Trabalhos selecionados para Colóquio Interno – 2° Semestre 2022
Ciclo I
Aluno: Luciana de Paula
Título: O humano tecelão de símbolos: uma reflexão metalinguística
“Texto” vem do latim texere (construir, tecer),
cujo particípio passado textus também era
usado como substantivo, e significava
“maneira de tecer”, “coisa tecida”, “tecido” […]
– Dicionário de etimologia on-line –
Na ocasião da primeira aula do Ciclo I, uma série de orientações nos foi dada sobre o desenrolar do presente curso de formação em psicanálise. Embora tais explicações tenham ressoado em mim de forma coerente, uma orientação específica me causou certo incômodo: a orientação acerca da escrita do presente trabalho, elemento que, apesar de constituir parte dos requisitos para a aprovação no curso, passa longe do formato avaliativo acadêmico típico de
instituições universitárias.
Ainda que eu reconheça a verdadeira intenção por trás de tal afirmação, o desejo de se distanciar do lugar de julgamento e até mesmo tutela ocupado pelo olhar avaliador, inquiridor e demasiadamente objetivo muitas vezes sustentado pelas instituições acadêmicas de formação superior, ainda observo algum desencontro. Na vivência que tive a oportunidade de experimentar, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), na maioria das vezes (se não na totalidade das ocasiões) recebi, de meus professores, uma formação bastante refratária ao já mencionado formato avaliativo acadêmico típico.
Embora vigilante em relação a um método de organização textual e às regras gramaticais de escrita, sempre fui orientada no sentido de sair do labirinto seguindo o fio de Ariadne: fruir uma intuição, uma inquietação verdadeira, por mais simples que esta fosse. Fui incentivada a encarar com sinceridade minhas elaborações iniciais e persegui-las na tentativa de, lentamente, ir dando espaço e desenvolvendo algo como um faro investigativo, uma curiosidade honesta e alegre, um prazer em cada pequena descoberta que, aos poucos, vai se revelando coerente, como a regra por trás da trama em uma obra de tapeçaria. Essa maneira de proceder, conforme a orientação de meus professores, lentamente, conduziria cada um de nós, alunos, na época, a uma escrita um pouco mais original resultante do aprazeirar-se pelo buscar, refletir, organizar e, finalmente, tecer.
Ainda que o prazer esteja implicado, existe algo mais. A escrita, sem dúvida, exige angústia, erro, reconhecimento, maturidade, recomeço, fôlego dentre outros elementos. Contudo, acredito que a verdadeira lição que meus professores da graduação tentaram me transmitir, em relação à escrita acadêmica, foi o fato de que não há produção valiosa que não parta dos fluídicos fios de Eros, mesmo se, com tal escrita, o objetivo seja criticar ou refutar um pensamento anterior. Às vezes, a escrita acadêmica nos coloca em um campo de batalha e a pluralidade e heterogeneidade de fios evocam a beleza e o incômodo tão característicos do diálogo democrático.
Confesso que, a princípio, essa orientação recebida na graduação me foi bastante complicada. Escrevi muitos textos bem ruins, ingênuos a ponto de inspirar compaixão. Mesmo assim, sempre houve um professor pronto a me orientar, elencando críticas, recomendando leituras e passando algumas horas em seu gabinete, conversando comigo e fornecendo-me indicações de leitura, novos novelos e teares. Havia, nesse processo, um encontro: o encontro de um ser humano gentil, a compartilhar aquilo que sabia, com um ser humano, embora um pouco desastrado, ávido em seu desejo pelo conhecimento novo. O professor Mário Bruno Sproviero, que muito dividiu comigo, disse em uma entrevista1, retomando Freud: “Lembro-me de um exemplo de Freud que diz que educar uma criança é tão difícil quanto conduzir um barco por Sila e Caribdes, evitar o escolho da repressão e também o de deixar a criança entregue a si mesma” (SPROVIERO, LAUAND 1997). Com a escrita acadêmica era semelhante: havia um cuidado no sentido de conduzir o aprendiz pelas vias textuais, prevenindo-o quanto às exigências da forma, alertando em relação ao engano, mas, ao mesmo tempo, estimulando o cultivo de certa independência criativa responsável. Os pontos da
tessitura são sempre determinados, mas a sequência de pontos, a imagem e as cores, somos nós quem escolhemos, tentamos harmonizar e respondemos pela obra final.
Depois de algum tempo com esses professores, dos quais a educação/formação que recebi estava profundamente atrelada à escrita acadêmica, compreendi que, para mim, é muito forte a ideia de uma escrita prazerosa, que traz ao pensamento o conforto da forma, a alegria da compreensão, que consola ao dar voz a certas angústias, purgando a tensão. É por essas qualidades 1 Entrevista mencionada disponível em: www.hottopos.com/mirand3/linguage.htm acessada em 29/05/2022. da escrita (e por muitas outras) que o material do qual ela se constitui é tratado como língua materna. O texto, às vezes, resulta em um manto quentinho.
Mesmo tecida pelos fios da língua materna, ressalto, mais uma vez: escrita acadêmica não é só prazer. Muito embora ela tenha seu braço acalentador-consolador, ela também irrita, é ingrata, exige uma coerência além dos instintos, um tempo que não é o do escritor, uma precisão apurada. Às vezes, os fios se embaraçam armando ciladas sem vacilar, jogando na cara do empenhado e por vezes exausto escritor-tecelão suas contradições e suas incoerências de forma nua e crua. Nesse sentido, observo o texto como uma face zombeteira do inconsciente que revela aquilo que há de
pior em cada um de nós e que, por algum motivo, nos escapa. Quantas não foram as vezes nas quais eu me assustei e me envergonhei com o que havia escrito. Que suposição ingênua! Que conclusão obvia e pobre! Que grande contradição! Mesmo assim, foram essas revelações que me fizeram pensar acerca da pessoa que eu era e acerca da pessoa que eu ainda quero ser, em outras palavras, foram essas revelações incômodas que me colocaram, humildemente, em movimento, nas trilhas da experiência humana, no desejo de tentar ser alguém melhor.
Talvez, desse caráter materno e paterno, a constante mais confiável a qual podemos chegar aqui é a de que a escrita acadêmica é intensa, é uma poderosa via de manipulação de energia pelo prazer e pela dor. Fios ásperos e fios macios compõem estrutura sólida e toque agradável.
Hoje, depois de algum percurso no meio acadêmico, no desenvolvimento de pesquisa, reconheço que somente há sentido e fôlego àquilo que fala forte ao coração, seja pelo amor, seja pelo ódio, seja pela potência construtiva, seja pela destrutiva. É somente por isso que a pesquisa faz sentido. “Sem tesão não há tese!”, dizia, em suas aulas, o professor Emerson da Cruz Inácio. Sem tesão não há tese, sem raiva e revolta não há manifesto, sem curiosidade não há artigo científico, sem prazer por pensar não há ensaio e sem desejo de ensinar não há texto pedagógico. Sem as
emoções oriundas dos fluxos libidinais, sem entusiasmo e sem intensidade, nada na pesquisa e, portanto, na escrita acadêmica é verdadeiro.
Não estaria, nessa escrita enquanto objeto de amor e de ódio, os mesmos pontos de ancoragem utilizados por Freud para a composição das pulsões de vida e de morte? É interessante observar que a escrita, enquanto objeto pulsional, em certa medida contém as grandezas instintuais. Não sei se compreendi bem, mas acredito que há algo de uma organização especular diante da qual o desejo e seu objeto confundem-se, comungam em identidade, assemelhando-se e anulando suas fronteiras, quase como se, no breve momento da satisfação, desejante e objeto se tonassem unos. Em minha relação com a escrita, acredito que esse é o gozo. Suspeito que deva ser assim com qualquer objeto pulsional quando este é considerado em profundidade. O tecelão, envolto sob seu manto, adormece.
Nas minhas iniciais trilhas reflexivas em relação a esse gozo através da escrita, um fato específico me chamou muito a atenção: ao participar do encontro Literatura e Psicanálise: como narrar a si mesmo? Autoficção e outras narrativas auto biográficas, promovido pelo Centro de Estudos Psicanalíticos, o CEP, no dia 06 de Maio de 2022, observei, com grande entusiasmo, a fala da escritora Giovana Madalosso, que retomava uma ideia de Lobo Antunes para quem “A escrita acontece quando a mão descola da cabeça”.
Mesmo entendendo que Madalosso se referia à escrita literária, ainda assim observo alguma semelhança em relação à escrita acadêmica. Reconheço esse fato na minha experiência que, mesmo com todas as suas exigências e formalidades, conserva um espaço de “ascese inconsciente”. Há um momento no qual não sou eu, não é meu eu que está no controle a ponto de pegar-me pensando “Caramba! Fui eu quem escreveu isso?”. A face zombeteira do inconsciente, novamente, se manifesta e o manto a cobrir o tecelão o envolve como um casulo e reserva a seu autor a surpresa de uma metamorfose.
Não estaria aí, nessa escrita que nos escapa, certa “plenitude” humana de todos nós enquanto seres simbólicos? Na linguagem e, portanto, na escrita, somos tudo, até aquilo que nos escapa, que vem sozinho, não sabemos de onde. Há manifestação inconsciente na medida em que há um pouco de nós em cada gesto, na realidade, creio também que há manifestação inconsciente na medida em que há algo além de nós em cada gesto. Mesmo assim o recalque persiste, não como interdição, não como contrariedade, mas enquanto parte integrada à obra, pois, na escrita, na significação, na arte, na representação, há espaço para aquilo que a moral e o tabu condenam. É uma transgressão sem, na realidade, transgredir. Mergulhamos sem medo nas profundezas inconscientes porque, no símbolo, na escrita, o amparo do Édipo permanece. É a totalidade do desejo sem a desconexão da loucura. Temos tudo e o ego se conserva a revelia de uma plenitude que seria aniquilação. Na escrita, no símbolo, na significação, o ego permanece. A escrita é a lei que liberta. O tecelão, liberto de seu casulo, voa com asas de borboleta das quais brotam os próprios fios que se tecem espontaneamente em nuvens e azul.
Escrita, fluxo, movimento, reconhecimento, surpresa, liberdade. Tudo isso só é verdadeiramente intenso se resultante de profundos fluxos de energia vital, de tamanha pulsão que somente aqueles dotados da coragem necessária para arriscar colocarem-se no papel de ingênuos e idealistas são capazes de compreender. Freud foi assim. Por quantas vezes ele não foi apontado, ridicularizado e taxado como objeto de riso vexatório e de escárnio por ousar tratar daquilo que, apesar de toda moral, todo tabu e de toda limitação intelectual, para ele, era verdadeiro e, para ele, merecia ser materializado em palavras, em escrita e em teoria?
Inspirada e admirada pela coragem de Freud, acredito profundamente que esses fluxos energéticos trabalhados, observados inicialmente, na presente reflexão, em relação à escrita, devam estar por trás de um movimento maior de compreensão do ser humano em relação a si mesmo, ao outro e ao meio no qual ele se insere. A esse movimento, e a outros elementos que eu ainda não domino, mas que estou ansiosa por aprender, deu-se o feliz nome de psicanálise, a vultuosa tapeçaria de um sábio tecelão voador.
A brevíssima elaboração apresentada anteriormente considerou a escrita acadêmica em sua faceta prazerosa e arredia, reconhecendo, nessa mesma escrita, enquanto objeto pulsional, os elementos das pulsões de vida e de morte. O fato de o objeto conter em si elementos característicos das pulsões levou à suposição de certo caráter especular entre desejante e objeto. Tal identificação nos conduziu à ideia de gozo como um momento no qual a manifestação inconsciente acontece na plenitude da tessitura linguística, obra do ser humano enquanto tecelão de símbolos. Tal revelação é reservada àqueles que, assim como Freud, não se curvam ao discurso dominante da moral e do tabu, mas se entregam à intensidade do desejo que clama por representação, tecelagem e voos.
Finalmente, gostaria apenas de registrar que classificações não fazem muito sentido em relação à escrita quando esta é observada em profundidade e como objeto de pulsão. Por isso, e respeitando a essência humana da contradição, permito-me terminar a presente reflexão sobre a escrita acadêmica com um poema. O poema se chama Rupestre e foi escrito na ocasião de uma viagem à cidade de Januária para visitar o Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, local que conserva uma belíssima série de pinturas rupestres, primeiras tramas de nossos antepassados simbolizadores.
Rupestre
É por necessidade que o homem simboliza
Risca o carvão em uma pedra e significa
Fazer do mundo parte de sua mente
Criar palavra incessantemente
Magia, linguagem, semente
Humano, palavra, alento,
Sentimento
Pensamento, razão em movimento
Caverna, rocha, expressão, simbolização, livramento
E até hoje falam
Perpetuam sua voz pelo tempo
Tendo por testemunha o firmamento
Lá reside o sentido em desenho
É o signo linguístico, alma humana, no sedimento
Referências
CENTRO DE ESTUDOS PSICANALÍTICOS – CEP. Literatura e Psicanálise: como narrar a si mesmo?
Autoficção e outras narrativas autobiográficas. Encontro ocorrido em 06/05/2022.
DE PAULA, Luciana. Rupestre. In: Januária. Livreto de poemas publicado de forma independente.
São Paulo, 2020.
FREUD, Sigmund. Os instintos e suas vicissitudes, 1915. In: FREUD, Sigmund. A história do
movimento psicanalítico. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 115-144.
FREUD, Sigmund. Repressão, 1915. In: FREUD, Sigmund. A história do movimento psicanalítico. Rio
de Janeiro: Imago, 1996. p. 145-162.
SPROVIERO, M. B. LAUAND, L. J. Linguagem e consciência: a voz média. Disponível em
http://www.hottopos.com/mirand3/linguage.htm acessado em 29/05/2022.
Ciclo II
Aluno: Felipe Cireno Teobaldo
Título: Das unheimliche e classe média: a angústia na geração TikTok
“Unheimlich is the name for everything that ought to have remained secret and hidden but has come to light.”
– F. W. J. Schelling
Para ler ouvindo: Liminal Space Music
O inquietante (originalmente, em alemão, Das Unheimliche) é um conceito freudiano que se refere a algo que não é propriamente misterioso mas estranhamente familiar. O inquietante provoca a sensação de angústia, confusão e estranhamento – ou mesmo terror – àquilo que é conhecido. O termo, usado por Freud em 1919, numa perspectiva psicanalítica, já estava presente na obra de E. T. A. Hoffmann (1776), como um conceito da estética. Freud constrói sua abordagem através da ideia do que deveria permanecer oculto, mas que veio à tona como sentimento angustiante.
Quando nos deparamos com esse tipo de desconforto, observações clínicas psicanalíticas notaram que, em geral, a raiz dessa agitação é algo próximo. Aquilo que torna a pessoa inquieta, em geral, está dentro do próprio indivíduo que observa. O estranhamento vem de algo que (re)conhecemos – que recalcamos (inibimos do nosso consciente) – e a informação nos retorna na forma de uma sensação esquisita – de angústia diante dessa aparição.
Unheimlich vem de Heim, palavra que significa ‘lar’ e que introduz uma noção de familiaridade, mas é também raiz da palavra Geheimnis, que pode ser traduzida como ‘segredo’, no sentido de algo que é da família ou que deve permanecer escondido. Para conseguir compreender a dimensão do inquietante é preciso entender as ambivalências da própria palavra. Sobre elas podemos resumir em 4 pilares.
1- Quando o familiar é a casa, privacidade ou intimidade – e em oposição, o infamiliar está na rua, no exterior, na floresta, no público. 2- Quando o familiar é interpretado como a confiança, proximidade – e o infamiliar é a distância, o segredo e o que provoca desconfiança e recuo. 3- Quando o familiar vive do lado do que permanece oculto, da ignorância do que nos conforta – e o estranho e infamiliar é a revelação perturbadora. 4- Quando o familiar está do lado do vivo e da vida, e o infamiliar do lado do morto e do inumano.
O que Freud e a teoria psicanalítica notaram foi a pendularidade dos significados, eles se instabilizam, mas não criam oposição simples. A sensação de familiaridade é o que preenche de sentido o infamiliar. Sendo assim, a estranheza e o medo são inseparáveis da nossa experiência de conforto.
O conforto na classe média
O desenvolvimento econômico acelerado da sociedade americana após a revolução industrial impulsionou o formato nuclear patriarcal da família, criando uma concentração de capital na classe média e ao redor dela uma cultura de consumo orientada por marcas e mídias de massa. Durante a década de 90, quando computadores começavam seu domínio sobre os lares ocidentais, era comum o guerra simbólica entre marcas – Pepsi vs Coca, Nintendo VS Sega, Mac vs PC marcaram a compreensão de muitas pessoas de sua própria identidade em idade jovem, através de escolhas de produtos.
A organização da classe média pela lógica de produção e consumo é fundamentada na sustentação do sistema capitalista. O conformismo e a normose histórica dessa classe parecem demonstrações de um arquétipo de homem-comum – um desejo coletivo de total integração e aceitação no círculo social ao custo de sua diferença e autenticidade – daqui é possível pensar a importância da psicanálise emprega ao reconhecimento/pertencimento como condição de subjetivacão. A classe média americana ainda valoriza essa integração com ordem do homem comum, reforçando
diligência, sobriedade, fidelidade, processo e ordem – apontadas como “as pequenas virtudes do homem burguês” segundo autor David Frum, eixos centrais de valores conservadores e organização da “massa virtuosa”.
É possível compreender como a alienação do indivíduo – enquanto sua adaptação irrefletida na norma ou num propósito comum – podem parecer desconfortáveis especialmente para a classemédia.
O perfil da classe média online e suas redes
Nos EUA em 2018 mais de 58% dos adultos estavam na classe média. No Brasil a inclusão social na internet é fato, veio para ficar e transformar o jeito das pessoas se relacionarem. Já são mais de 48,3 milhões de usuários da classe C no Brasil, superando a população digital de países como México e Itália, até mesmo o total de habitantes do Canadá. São pessoas que estão buscando, assistindo conteúdo, comentando e compartilhando informações nos mais variados formatos, canais e dispositivos. Para se ter uma ideia, em menos de uma década, enquanto a população brasileira
cresceu 10%, a classe média emergente brasileira cresceu 204%, ultrapassando em mais da metade o número absoluto de pessoas das classes AB.
Essa massa de jovens adultos cresceram na cultura da idealização material da classe média dos anos 90/00 e seguiram para enfrentar uma adolescência de crises, retração econômica e crescente ansiedade global – além da recente pandemia.
De acordo com uma pesquisa, realizada em dezembro com 1.234 entrevistados, o percentual dos que lá no início do período de isolamento social, em abril, diziam acreditar que o mundo iria mudar após a pandemia era de 87%. Para 50% dos ouvidos, àquela altura, essa mudança seria para melhor. Quando indagados qual era a expectativa deles, em dezembro, sobre o futuro, esses índices caíram para 83% e 46%, respectivamente.
No começo, 57% se preocupavam mais com os pais e 33% com o trabalho. Em dezembro esses índices caíram para 46% e 27%, respectivamente.
Essa audiência desconfortável com o futuro e intensamente aderida ao mundo digital hoje produz conteúdos de “social video” e nos recortes geracionais o etário corresponde a pessoas com 25 a 45 anos – que cobrem a geração Z e millennials mais jovens. Essa audiência online da classe média é a maior produtora de conteúdo do planeta – com especial afinidade a rede TikTok e instagram pela sua visualidade e potência narrativa.
Nostalgia e o deslocamento de propósito
A estética conhecida como Espaço Liminar é um local que é uma transição entre dois outros locais, ou estados de ser. Nos últimos 2 anos, apenas no tiktok foram produzidos 1.4 bilhões de post sobre esse assunto/estética.
No conteúdo liminal, espaços estão abandonados ou vazios – um shopping às 4 da manhã ou um corredor de escola sem ninguém. A intimidade com esses espaços comuns faz com que vê-los vazios pareça haver algo incomum e inquietante apesar da familiaridade para nossas mentes.
Fiel à sua etimologia (“liminar” sendo derivado da palavra latina limen, que significa “limiar”), o conceito de espaço liminar engloba espaços físicos que, por sua função, são de natureza transitória – corredores, salas de espera, estacionamentos e paradas para descanso são os exemplos arquetípicos de tais lugares.
Gráfico mostra o volume de pesquisas no google pela palavra “liminal” em todo o mundo desde 2004. O interesse recente pelo assunto foi impulsionado pela estética liminal.
A estética do espaço liminar está relacionada aos sentimentos únicos de estranheza, nostalgia e apreensão que as pessoas relatam quando são apresentados a esses lugares fora do contexto projetado; mais notavelmente, sua função como pontos intermediários entre origem e destino.
Por exemplo, uma escada vazia ou um corredor de hospital à noite pode parecer sinistro ou estranho, porque esses lugares geralmente estão cheios de vida e movimento – um deslocamento de sentido de um lugar prático que acaba por afetar o eixo central do conforto simbólico da classe média – a previsibilidade e cumprimento de função.
A ausência de estímulos externos (como conversas, pessoas se movimentando ou qualquer tipo de dinamismo) cria uma atmosfera sobrenatural e desamparada por que a função desses espaços é a velocidade, movimento e consumo.
A liminaridade que evoca o desconforto parece agir na angústia de uma massa tentando expressar um descontentamento com o próprio mundo material – shoppings vazios, colégios abandonados e hospitais são pontos centrais dessa estética. Ambientes de constituição do indivíduo da classe média que através dessas imagens de abandono e isolamento metaforizam suas emoções.
Algumas emoções também podem ser vistas como espaços liminares, já que também são eventos transitórios psíquicos – como por exemplo o luto. A estranheza da ausência do que era familiar é um dos pilares da interpretação Freudiana do unheimlich.
A familiaridade inquietante publicada na internet vem desses espaços sociais físicos e abandonados de outra década. Nostalgia e deslocamento que ecoa a classe média e seus valores – e para um otimista, poderia ser sinal de um possível luto pela idealização do consumo da década de 90 e busca por novo significado para seu sistema normativo.
Nesse sentido, talvez a explosão de conteúdo online poderia ser vista como um território de arteterapia para uma massa tentando administrar o custo psíquico de suas memórias e nostálgias versus a ansiedade e desânimo pelo fim do futuro como um fato cultural.
As novas estéticas online e o retorno do infamiliar inquietante.
A grande popularidade do “umheimlich” na cultura digital e suas estéticas talvez sejam respostas ao desgastante excesso de informação e a acelerada familiaridade com imagens que a internet está nos oferecendo.
Mas, assim como o familiar e o infamiliar caminham de modo codependente, a anestesia acompanha a estética. A estética (Aesthetic) enquanto campo da sensação e discurso tem sido acompanhada por uma massa anestesiada (Anaesthetic) cada vez menos capaz de atribuir sentido fora do território lógico ou funcional. Perseguições a arte, esvaziamento do valor da cultura e empobrecimento teórico são sintomas da anestesia: berço da estranheza e da angústia, da incapacidade de atribuir significado claro. São também censuras cada vez mais normalizadas pela
classe média em discursos políticos conservadores – com o cerceamento da arte e a busca conservadora “pela arte ideal não-degenerada” que flerta com ideais fascistas de padronização social.
Além dos espaços liminais com 1.6 bilhões de posts no tiktok, os Backrooms – subcategoria da estética liminal que foca em salas esquecidas possuem mais 3.5 bilhões de posts. Outras estéticas tangenciam o mesmo sentimento e posicionam esse território do desconforto online como um dos grandes focos da produção de conteúdo dessa geração – a rede sofre com desconforto e angústia.
Espaço liminares e estéticas virais populares em 2022 carregam o Umheimliche no eixo de suas provocações – confusões de atribuição de sentido. A anestesia que nasce do excesso de informação nos dessensibiliza – angústia que forma um estímulo potente para produção de conteúdo e tentativa de elaboração coletiva.
Na luz de uma sociedade cada vez mais crítica ao papel das corporações, e existência de bilionários, talvez esses sejam sintomas de uma classe média em crise com o território de seus valores mais íntimos, talvez, com seu próprio materialismo e virtuosidade pequeno burguesa.
Mais exploração estética da liminaridade/unheimlich contemporâneo:
Playlist: Liminal Space Music
Vídeos: Vídeo compilação de imagens da estética Liminal
Painel da Hashtag #liminal do instagram: Posts sobre Liminal
Painel da Hashtag #backrooms do instagram: Posts sobre Backrooms
A produção desse texto me inspirou a dividir com outras pessoas essa pesquisa sobre o desconforto e acabei publicando mais de 300 exemplos diferentes de conteúdos e 15 tópicos de estéticas derivadas do unheimlich no meu instagram pessoal.
Referências:
FREUD, S. Totem e Tabu. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. 13. Rio de Janeiro: Imago, 1990,
FREUD, S. Obras completas – O mal-estar na civilização, Novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos ( 1930-1936). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. v. 18.
Freud, S.. O infamiliar / Das Unheimliche, seguido de O Homem da Areia. Trad. Ernani Chaves, Pedro Heliodoro Tavares e Romero Freitas. Belo Horizonte: Autêntica
Pochmann, M. O mito da grande classe média: capitalismo e estrutura social. Trad Edição
Português Marcio P. Boitempo Editorial
Canais no Youtube:
Nightshade: Weirdcore, Dreamcore, Traumacore – The Age of Internet Aesthetics
Nightshade: The Dreampools – Overanalyzing Jared Pike
Polygon Donut: Understanding The Meaning of Weirdcore
Polygon Donut: The True Meaning of Liminal Spaces
J.J. McCullough: Middle Class Milennial Nostalgia Art
The Infographics Show: Backrooms explained
Solar Sands: Liminal Spaces (Exploring an Altered Reality)
Ciclo III
Aluno: Andrea Bárbara Lopes de Azevedo
Título: A Mãe do Mano: alguns aspectos da função materna e paterna a partir da escuta sobre uma família periférica
“Eu tinha mais medo da minha mãe do que da polícia”, a frase que ouvi do rapper Mano Brown numa entrevista no programa 351 do podcast Podpah me impressionou. Vocalista do Racionais MC’s, o mais relevante grupo de rap nacional, Brown é também figura central na própria produção musical do gênero no país2. Por meio de música violenta para tratar de temas violentos3, Brown e seus parceiros no Racionais explicitavam crimes em seus versos e denunciavam a perseguição, o abandono e o assassinado pelo Estado e pelas forças policiais de sujeitos negros
habitantes dos bairros periféricos da cidade de São Paulo. Manifestando sempre uma postura contestadora em seus concertos, ainda o grupo ainda exteriorizava imagens da banda em que os membros traziam nas mãos armamento e munição e símbolos que eram associados a crimes. Encarada pela classe média e alta com horror e medo e ignorada pela classe musical e pelas gravadoras renomadas, o rap era tido como uma música pobre tanto pela ausência de melodia quanto pelos temas abordados e pelos sujeitos periféricos envolvidos em sua concepção4. Sendo Mano Brown aquele que é referência nacional pela forma como circulou pela periferia, pelos temas violentos abordados, pela associação a concepções tomadas como criminosas e pelo desafio tanto à polícia quanto aos valores e crenças comuns da sociedade, como seria possível que este indivíduo
2 Teperman, Ricardo. Se liga no som: As transformações do rap no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2015, p. 65 e ss.
3 Id., ibid., p. 67; Garcia, Walter. “Ouvindo Racionais MC’s”. Teresa, Revista de Literatura Brasileira, n. 4, v. 5, São Paulo,p. 166-180, 2004.revista de Literatura Brasileira [4 | 5]; São Paulo, p. 166-180,2004. O próprio Mano Brown declara sua forma musical da violência contra a violência.
4 Para o horror dos conservadores, a palavra rap como é concebida pelos membros do gênero e pelos pesquisadores do tema seria uma sigla de ritmo e poesia. As próprias letras das canções são consideradas poemas e não poucas vezes as batalhas e shows de rappers, bem como sua forma de criação é aludida pelos músicos como “rima”, “fazer rima”, “batalha de rima”. Os músicos do gênero, nesse sentido, seriam herdeiros da poesia e da tradição poética. Cf. Teperman, R. Se liga…, op. cit. p.
que parecia estar acima dos temas e medos organizativos e de autoridade compartilhados pela sociedade revelasse um alto temor em relação à sua mãe?
Ainda, me espantou que, na mesma entrevista, a mãe era mencionada também com afeto por Brown. Sabemos com Freud que, no Complexo de Édipo para os meninos, a mãe se revela como o primeiro objeto de investimento libidinal e, por estar apaixonado pela mãe, o menino desenvolve sentimentos de raiva em relação ao pai na tentativa de eliminá-lo e substituí-lo como companheiro da mãe5. O Édipo chegaria ao fim pela atuação do pai no complexo de castração. O menino reconheceria na “figura paterna o obstáculo à realização de seus desejos. Abandona o investimento feito na mãe e evolui para uma identificação com o pai”6. O resultado da repressão do amor à mãe
encerra o Édipo e dá origem ao Supereu, instância que atuará como domínio do Eu e será consciência moral e ética do sujeito. Freud diz que o Supereu conserva o caráter do pai7, ele se torna a instância castradora do Eu. O Supereu, responsável pela ética e moralidade do sujeito, encerra em si a severidade do pai8 e a ordem do que é socialmente aceito, a autoridade da cultura, da lei, da civilização9. Na fala do Brown, sua mãe é apontada como a verdadeira lei, aquela que ele temia, mais que as autoridades policiais, que exercem sabidamente um papel violento e repressor nas
periferias brasileiras e, comprovadamente, na periferia paulistana, a qual era lugar de origem e vivência de Brown. Seria a mãe do rapper que teria exercido um papel de castração para o garoto Brown? Quem e como era aquela mãe que exercia temor sobre um músico de periferia que fora associado por muito tempo como o mais importante rapper “do crime”? A visão da mãe autoritária seria resultado de uma vivência singular do Complexo de Édipo?
***
Acompanhando o Podcast de entrevistas feito pelo próprio Mano Brown, Mano-a-Mano10, pude ouvir mais revelações de Brown sobre sua mãe e sua família, que anunciavam algo além da sua constituição específica, mas que poderia talvez ser uma constituição de diversas famílias periféricas.
5 Freud, Sigmund. “O Eu e o Id (1923)”. In: _______, Obras completas, v. 16. Tradução de Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p. 40 e ss.
6 Roudinesco, Elisabeth; Polon, Michel. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro, Zahar, 1998, p. 168, verbete “Complexo de Édipo”.
7 Freud, Sigmund. “O Eu e o Id…”, op. cit., p. 42.
8 Id. “A dissolução do complexo de Édipo (1924)”. In: ______. Obras completas, v. 16, op. cit., p. 209.
9 Roudinesco, Elisabeth; Polon, Michel. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro, Zahar, 1998, p. 744, verbete “Supereu”.
10 Mano Brown. “Mano-a-Mano”. Spotify, temporadas 1 e 2.
Não são poucas vezes que Mano Brown menciona aos seus entrevistados que era filho único, que não tinha ninguém que o influenciasse, que sempre buscara referências de homens mais velhos na periferia, mas que só sentiu que tinha família com o rap. Filho único, “tinha apenas a mãe”, como declara muitas vezes, nunca tendo conhecido seu pai. Em um dos episódios, ele conta a um convidado que nunca viu o pai, que nem sabe como ele era, que tudo que mãe lhe contara fora que o pai havia visto Brown quando bebê, “olhou, virou, foi embora e nunca mais voltou”11. Donald W.
Winnicott em seus estudos apresenta a importância da relação com a mãe ou a figura materna no desenvolvimento do grau de confiança do bebê12. É a presença da mãe, a constância de seu cuidado em atender às necessidades do bebê que dão forma a confiança que o bebê desenvolverá para se relacionar de forma objetal, bem como o ambiente oferecido pela figura materna e parentais oferecerão as experiências que vão constituir sua personalidade13. Apesar de Winnicott dizer da mãe, ele explicita em outros momentos que se refere a quem exerce a função da mãe, que acolhe e cuida do bebê e oferece tanto o contato do colo, quanto o olhar que dará confiança ao bebê pela presença, podendo, portanto, ser exercido tanto pela mãe, pelo pai, pelo genitor, quanto por outros familiares. Ainda que não se saiba sobre a presença desse colo em relação à mãe, quando Brown expõe a ausência do pai, ele declara a ausência desse cuidador, de um colo que lhe desse confiança, anunciando uma marca da sua sensação de abandono, o que, como apresenta Winnicott, marcaria a personalidade de um sujeito. Parece significativo notar a importância dessa narrativa da mãe ao Brown que o guarda como uma marca de um sujeito que foi rejeitado e abandonado pelo pai e não protegido pela mãe deste acontecimento. O colo oferecido pela mãe não teria oferecido o acolhimento capaz de ignorar essa sensação de abandono.
As considerações que fiz sobre a ausência de uma figura masculina, a qual diz Brown, referese a uma experiência primária, uma experiência pré-edipiana vivenciada pelo bebê Brown, mas também pode ser experiência que encontramos entre as famílias periféricas, onde os números de mulheres com filhos e chefes de família vivendo sozinhas é significativo, especialmente, entre as mulheres negras. A estrutura familiar da população negra é distinta no Brasil por questões históricas. Florestan Fernandes em seu clássico estudo A integração do negro na sociedade de
classes argumenta que os indivíduos libertos da escravidão não foram incorporados na nova organização econômica urbana e industrial das cidades, acabando por ocupar trabalhos temporários, precários e rejeitados pela maioria dos trabalhadores, como nos setores de limpeza
11 Idem.
12 Winnicott, Donald W. “O lugar em que vivemos”. In: ______. O brincar e a realidade. São Paulo: Ubu, 2019, p. 173.
13 Id., “A criança no grupo familiar”. In: ______. Tudo começa em casa. São Paulo: Ubu, 2021, p. 155.
pública, de comércio ilegal e de alta periculosidade. Em especial, os homens negros ex-escravizados ocuparam postos desprestigiados, mal remunerados, o que os levou à marginalidade da sociedade, sem poder ocuparem os espaços de chefes de família. Já as mulheres negras ex-escravizadas foram incorporadas na nova ordem urbana segundo Fernandes ao serem aceitas no trabalho doméstico como empregadas de casas da alta classe, cuidando das limpezas e das crianças dessas casas, tornando as mulheres negras as responsáveis economicamente por suas famílias14. Importante perceber que essa incorporação na ordem urbana não implicava uma incorporação dessas mulheres
negras no mercado formal de trabalho, uma vez que as profissões de cuidado e limpeza doméstica somente tiveram proteção e direitos garantidos pela lei de acordo com os padrões do mercado formal de trabalho em 2015 – 15.
Sobre tal particularidade da formação das famílias negras e periféricas brasileiras, é interessante lembrarmos do estudo de Rita Segato sobre o Édipo Brasileiro. Neste estudo, Segato retoma a disputa entre o antropólogo Bronislaw Malinowski e o psicanalista Ernst Jones sobre as famílias melanésias em que as figuras masculinas não participavam do Édipo como castradoras por não ocuparem funções nas famílias nucleares como economicamente relevantes e atuarem como “irmãos” dos filhos de suas companheiras e aproxima essa experiência às famílias brasileiras que
nas altas classes e classes médias brasileira que tiveram em suas estruturas desde a escravidão babás e amas de leite em sua maioria negras que exerciam o papel materno junto às crianças que não haviam parido e que também não teriam interditos de castração ao amor entre os bebês e seus cuidadores 16.
As empregadas domésticas participam na tradição brasileira da vida familiar, sendo, muitas vezes, responsáveis pela criação e educação das crianças de seus patrões, o que ofereceria, portanto, uma triangulação diferente na realização do Complexo de Édipo17 das crianças dessas famílias de classe média e alta. Teríamos, assim, que as mulheres negras, quando empregadas domésticas ou babás, acabariam por exercer a função materna juntamente com as mães biológicas das crianças, sendo objeto de amor dessas crianças, amor este que não estaria sujeito à castração
14 Fernandes, Florestan. A integração do negro na sociedade de classe. 6a. ed. São Paulo: Contra-Corrente, 2021.
15 A Lei Complementar 150 de 2015 regulamentou a emenda constitucional n. 72 e ficou conhecida como a PEC das
Domésticas. A lei estendeu os direitos trabalhistas aos empregados domésticos como aos demais trabalhadores de
carteira assinada.
16 Um exemplo dessa relação entre as empregadas domésticas e o filho dos seus empregadores teve na cinematografia
atual o filme Que horas ela volta? em que uma empregada doméstica tem uma relação bastante afetiva com o filho de sua empregadora.
17 Segato, Rita. “Édipo brasileiro: a dupla negação de gênero e raça”. Série Antropologia, Brasília: UnB, 2006.
Disponível em: http://www.dan.unb.br/images/doc/Serie400empdf.pdf
da função paterna, uma vez que não participam do núcleo da relação afetiva e sexual do casal genitor. Em contrapartida, como consequência, tem-se que, em geral, os filhos biológicos dessas empregadas domésticas permanecem em suas casas, sendo cuidados por laços e estruturas de ajuda coletiva da vizinhança dos bairros em que habitam ou por membros da família estendida. Se haveria um édipo particular das famílias brasileiras das classes abastadas devido à essa manifestação cultural da organização brasileira, também poderia haver um édipo particular nas famílias negras em que as mães estão a exercer função materna na casa de seus patrões e seus
filhos participam de laços de afeto com outros indivíduos exercendo funções maternas e paternas sem interditos castradores. E assim, retornamos a Mano Brown que declara que sua mãe exercia a função de empregada doméstica, trabalhando em diversas casas, estando pouco presente em sua própria casa com Brown criança.
Como vivencia o Complexo de Édipo uma criança que não possui nenhuma figura paterna presente? Freud a centrar sua descrição do complexo no modelo da família patriarcal europeu não nos ajuda. Lacan, no entanto, oferece uma saída para que o Complexo de Édipo possa ser pensado além dos modelos tradicionais de família quando argumenta que não se trata do pai e mãe biológicos, mas das figuras que exercem para a criança a função materna e a função paterna. A função materna seria exercida, portanto, pelo sujeito que cuida do bebê, que o alimenta e protege,
que seria o primeiro objeto (subjetivo) que o bebê teria contato. Esse objeto que exerce a função materna é quem o bebê tomaria como objeto de amor no Complexo de Édipo. Sendo fonte de amor, ele é fonte de desejo e fonte de angústia do bebê. No caso de Brown, podemos supor que a mãe é quem exerce a função materna. Em um outro episódio do podcast, Brown revela que o maior medo de sua vida era perder sua mãe, que chegava mesmo a entrar em “estado de pânico”18 se ela se atrasasse porque começava a fantasiar que algo teria acontecido. Freud explicita em diversas ocasiões que o objeto de amor, é objeto de angústia e que o sujeito sobre apaixonamento tende a
paranoia, a fantasiar sobre o que não está ausente, o que nos ajuda a entender o forte vínculo que mantinha Brown com sua mãe.
Entretanto, sabemos também que a mãe de Brown provoca medo, em suas palavras “era braba”, exigia que ele fizesse tarefas em casa, que fosse educado e correto, o que resultava num Brown “tranquilo”, “na dele”, sempre “certinho”, uma figura muito diferente do que poderia se esperar de modo fantasioso do maior rapper “do crime”. Lacan, ao tratar como função, anuncia que função paterna refere-se a qualquer figura que faça a interdição, impeça o sujeito de viver o seu
18 Mano Brown. “Mano-a-Mano”. Spotify, temporadas 1 e 2.
desejo pelo outro da função materna. Se Brown, como outras crianças negras periféricas não tinham uma figura masculina ou paterna em casa, para entendermos esse Édipo, é preciso refletir sobre o que impediria esse sujeito de fundir-se com o primeiro outro a que dedica seu investimento libidinal. Brown não está em meu divã, mas a hipótese que levanto aqui é que o que teria impedido essa fusão com a figura materna teria sido o trabalho de sua mãe como empregada doméstica em outras casas, sendo, provavelmente, o alvo de amor em outros núcleos familiares. O trabalho de sua mãe em outros ambientes talvez impedissem Brown de ter uma vida absoluta com ela, o que poderia
levar a que ela se tornasse também para ele a fonte de autoridade maior e exercesse a castração, uma vez que a mãe era a responsável por este trabalho que os separariam. A hipótese é que teríamos aí é que a mãe exerceria essa ambiguidade de amor e temor para Brown, e ainda, talvez, pudéssemos pensar que sua personalidade contestadora e crítica que lhe resultará já na adolescência adentrar grupos de rap, assumir figuras de crime e de revolta com a violência e contra a sociedade, fosse também originada pelo ódio ao mundo desigual e interditor que tirou sua mãe
de sua casa o impedindo de vivenciá-la em sua plenitude.
Referências
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classe. 6a. ed. São Paulo: Contra-
Corrente, 2021.
FREUD, Sigmund. “O Eu e o Id (1923)”, “A dissolução do complexo de Édipo (1924)”. In: _______,
Obras completas, v. 16. Tradução de Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
GARCIA, Walter. “Ouvindo Racionais MC’s”. Teresa, Revista de Literatura Brasileira, n. 4, v. 5, São Paulo, p. 166-180, 2004.revista de Literatura Brasileira [4 | 5]; São Paulo, p. 166-180,2004
ROUDINESCO, Elisabeth; POLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro, Zahar, 1998.
SEGATO, Rita. “Édipo brasileiro: a dupla negação de gênero e raça”. Série Antropologia, Brasília: UnB, 2006. Disponível em: http://www.dan.unb.br/images/doc/Serie400empdf.pdf
SPOTIFY (Podcast). Mano Brown em “Mano-a-Mano”. Spotify, temporadas 1 e 2.
TEPERMAN, Ricardo. Se liga no som: As transformações do rap no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2015
WINNICOTT, Donald W. “O lugar em que vivemos”. In: ______. O brincar e a realidade. São Paulo: Ubu, 2019.
WINNICOTT, Donald W. “A criança no grupo familiar”. In: ______. Tudo começa em casa. São Paulo: Ubu, 2021
Ciclo IV
Aluno: Gabriela Maíra Bichara Cordaro Fernandes
Título: Mas a gente nunca sabe mesmo o que é que quer uma mulher
Para nomear este trabalho, tomo emprestado o último verso da canção “Pecado Original”, de Caetano Veloso, que recria a pergunta enunciada por Freud.
Pretendo tecer algumas breves considerações sobre a mulher e a psicanálise, sem nenhuma pretensão ou expectativa de esgotar o assunto – que me parece inesgotável como a própria natureza psicanalítica, já que todo corpo em movimento está cheio de inferno e céu, como diz a mesma canção.
Como se sabe, a clínica psicanalítica começou do encontro de um homem com algumas mulheres que não sabiam o lugar certo de colocar o desejo. Assim, a psicanálise nasce da tentativa de tratamento das mulheres histéricas e suas insatisfações, marcadas por uma época de grande repressão sexual. O recorte cultural e socioeconômico que atravessava essas pacientes era sua estrutura familiar nuclear e burguesa, onde o triângulo mãe, pai e filhos era determinante das relações estabelecidas.
A mulher, nesse contexto, tinha um papel preciso de cuidar e de se responsabilizar pela educação de sua prole. Na lógica familiar burguesa, o lugar que poderia ser ocupado pela mulher era o de esposa e de mãe. Caberia ao pai ordenar simbolicamente a linguagem a partir do Complexo de Édipo e da Angústia de Castração.
Emilce Dio Bleichmar diz que existe um “feminismo espontâneo”20 na histérica, o de quem reivindica a possibilidade de ser mulher sem ser reduzida a um único modelo de feminilidade: a maternidade.
19 Trecho da canção “Pecado Original” de Caetano Veloso
20 BLEICHMAR, Emilce dio. El feminismo esponataneo de la histeria.
Freud, priorizando o lugar da sexualidade no sintoma histérico, deixou outro aspecto que salta aos olhos em seus casos clínicos: essas mulheres encontravam-se insatisfeitas com o papel e o lugar que a sociedade lhes reservava. O protesto histérico trazia também uma reivindicação inconsciente, a liberdade para desejar.
Teríamos, então, o casamento simbólico entre a mulher histérica – e sua eterna insatisfação e alienação do ponto de vista do desejo – com o neurótico obsessivo, que recalcaria sua insatisfação, deslocando-a para desejos irrelevantes. Não haveria relação sexual possível, diria Lacan, já que o encontro sexual entre duas pessoas significaria um choque entre dois mundos distintos, que não foram forjados para se complementarem.
Nesse contexto, caberia à mulher, agora esposa e mãe, outrora bruxa e feiticeira, o mito do amor materno e assim ela passaria a ser considerada naturalmente apta para o cuidado.
Freud, a partir de suas investigações com as pacientes histéricas, enuncia a seguinte pergunta crucial para Marie Bonaparte, sua analisanda e discípula dileta, “O que quer uma mulher?”. Hoje sabemos que essa pergunta só poderia ser enunciada no plural, já que a questão contemporânea, talvez, seja entender onde ficam as outras múltiplas possibilidades de ser mulher, que não pertencem à estrutura esposa\mãe e que independem do gênero biológico.
Sobre a delicadíssima questão de gênero, Jairo Gerbase, no prefácio do livro “Homens, Mulheres”
de Colette Soler, afirma:
“…quando se trata de nossa disciplina, a psicanálise, a disciplina que parte desse lugar chamado por Freud de inconsciente, não há diferença anatômica. Logo, não há diferença de gênero, não há masculino e feminino. Lá no lugar do Outro, a anatomia não é o destino.”21
Na passagem do século XIX para o XX, a ideia de que a mulher é mãe é completamente instaurada através do conceito de Maternalismo. A priorização do chamado binômio mãe-filho como objeto de preocupação social no mundo ocidental foi um fenômeno amplamente assinalado pela historiografia. Tal priorização defendia a preponderância do papel de mãe para todas as mulheres. A mulher torna-se a responsável pela infância.
Ao atrelar as virtudes da maternidade à natureza feminina, temos um cilada. Se, por um lado encarceramos as mulheres no papel de mãe, por outro aumentamos seu poder através de sua
21 SOLER, Colette. Homens, Mulheres.
própria iniciativa e participação, com a proteção social e reivindicações feministas quanto aos direitos políticos e sociais das mulheres, sobretudo quanto ao reconhecimento público da maternidade como função social. Nesse contexto, cuidar da infância é cuidar da mulher, mas não se discute o porquê da mulher ser a responsável pela infância.
Voltando à psicanálise, Laplanche e Pontalis afirmam que “A personalidade constitui-se e diferencia-se por uma série de identificações”22. Freud observa que podem coexistir várias identificações, numa pluralidade das pessoas psíquicas. O Eu se constituiria no outro que lhe serve como modelo, construindo-se a partir de um processo histórico. Pela via da identificação, o sujeito toma para si aspectos do outro e do contexto cultural em que se insere.
Desse modo, penso na maternidade compulsória que até há pouquíssimo tempo era caminho óbvio para nós, mulheres. E aqui faço um parêntese para contar da ansiedade que vejo na clínica, quando mulheres entre 35 e 40 anos, que ainda não tiveram filhos, deparam-se com essa questão que gera muita angústia.
A escritora canadense Sheila Heti, autora do livro “Maternidade”, radicaliza e enuncia “Parem de perguntar às mulheres que não têm filhos por que elas não têm” e afirma que ainda é uma opção muito corajosa decidir não ser mãe.
Voltemos a Freud como forma de colocarmos luz a esse conflito contemporâneo; podemos dizer que sua teoria sobre a sexualidade feminina reforçou a assimilação da feminilidade à maternidade. A maternidade aparece como o único destino desejável e normal para as mulheres.
Para Silvia Alexim Nunes:
“Ao longo de seu percurso, Freud propôs uma teoria da sexualidade que desvinculou o processo de sexuação de homens e mulheres da anatomia e da biologia e, portanto, de uma perspectiva naturalista e essencialista, tratando-o como um processo de elaboração psíquica. Para Freud, seria a elaboração do complexo de castração que possibilitaria a constituição de uma identidade masculina ou feminina.”23
Freud aponta para a existência de três resultados possíveis da passagem das mulheres pela experiência da castração: uma inibição da sexualidade, que levaria à neurose; uma fixação em uma
22 LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J.- B. Vocabulário da Psicanálise.
23 NUNES ALEXIM, Silvia. Afinal, o que querem as mulheres? Maternidade e mal-estar.
posição viril, que negaria a feminilidade, e por fim, a maternidade, como única posição normal e desejável para a mulher. O tornar-se mulher acaba tendo uma espécie de “vocação libidinal”24 para a maternidade.
Assim como no livro “Maternidade” supracitado, também o cinema tem lançado diversos olhares que nos ajudam a entender o que hoje querem as mulheres.
No início do ano, o filme “A filha perdida”, dirigido por Maggie Gyllenhaal, adaptação do romance homônimo de Elena Ferrante, causou furor ao apresentar uma protagonista que se diz “uma mãe desnaturada”, uma mãe que não adere à natureza do falacioso instinto materno da era moderna e que foge por três anos deixando as duas filhas aos cuidados paternos, algo bem diferente da perspectiva burguesa da mãe devota. Uma protagonista que viaja sozinha, que tem desejo e que tem a coragem de fazer escolhas ditas “desagradáveis”. O filme é rico em situações que nos ajudam a responder nos dias de hoje a pergunta elaborada há quase cem anos por Freud à Marie Bonaparte. Num determinado momento, Leda, essa mãe “desnaturada”, depois de observar atentamente a relação entre Nina e Elena, mãe e filha de uma família barulhenta que passa as férias no mesmo local que a protagonista, acaba roubando a boneca da menina, situação que gera uma série de tensões e desdobramentos na história. Mas me parece significativo pensar que a boneca carrega em si esse símbolo identificatório da maternidade compulsória, já que é o brinquedo que tradicionalmente se endereça às meninas e que ensina para elas a maternagem. A boneca seria “a
filha da filha”, que permite à criança elaborar a relação com sua própria figura materna e que também cria a cadeia identificatória do cuidado. Leda quebra esse destino “trágico” das mães quando rouba a boneca de Elena.
Ousaria dizer que há séculos há um pacto tácito em se ter filhos. E, se hoje podemos decidir entre ter filhos ou não, esse pacto continua colocando as mulheres que decidem tê-los num lugar de responsabilidade principal de cuidados com a criança, que é ocupado em cadeia.
A psicanálise há algum tempo fala em função materna, uma atividade desempenhada por um adulto que possibilite a estruturação física e psíquica da criança, não precisando ser exercida necessariamente pela mãe, mas podendo ser realizada pelo pai, avó, avô, babá, tia, entre outros. Embora seja um avanço, será que o termo materno não nos condiciona a essa “natureza do instinto materno”?
24 Termo utilizado por Silvia Nunes Alexim
Nessa perspectiva, Alessandra Affortunati Martins, psicanalista e pesquisadora da Cátedra Edward Saïd/UNIFESP, propõe que o termo cunhado por Winnicott como “mãe suficientemente boa” – historicamente relacionado à importância de incluir a falha e desinflamar a mãe de sua onipresença – seja repensado como “adulto suficientemente bom”.
Já cientes de que as mulheres não formam um conjunto único, voltemos à pergunta de Freud. Se para a psicanálise o desejo é o que move o sujeito para a vida, não se pode esquecer que o desejo está atrelado à história emocional de cada um, em um determinado contexto histórico e cultural. Nas últimas décadas, as mulheres passaram a poder transformar sua capacidade desejante em quereres múltiplos. Muito se fala hoje da sobrecarga que vivem as mulheres na contemporaneidade, pois, se a maternidade não é mais compulsória, a labuta da maternagem ainda
o é. Se as mães são figuras essenciais para a construção da subjetividade, a lida das mães forma uma linguagem, que deve ser tratada como trabalho, formador de cultura, sob pena de se normatizar o instinto materno e voltarmos ao âmbito da natureza.
Na maioria dos casos, esse trabalho da maternagem, muito caro a nós psicanalistas, pois sabemos o quanto esse interfere na sanidade psíquica do sujeito, depende injustamente de uma única pessoa, a mãe, ainda que seja eventualmente substituída por outras mulheres, nas figuras das babás ou trabalhadoras do lar – base para que a família burguesa possa existir.
Dessa forma, precisamos tornar cada vez mais visível essa situação outrora invisível e nos perguntar se pensar no filho como o falo da mãe não seria uma cilada.
A parentalidade deve ser remodelada, já que mulheres são injustamente prejudicadas pela sobrecarga da maternidade e pela costumeira falta da divisão das tarefas. Sabemos que não há lugar certo para colocar o desejo, já que esse é inconsciente, mas urge encontrarmos mais tempo e espaço para que as vontades das mulheres possam multiplamente emergir.
Ouso finalizar ponderando que, a meu ver, Freud, se vivo estivesse, atualizaria o destino da mulher contemporânea, pois sua genialidade e sensibilidade não endossariam a situação injusta com que ainda criamos nossas crianças, que desconsidera as múltiplas capacidades e a dimensão psíquica do querer para além da maternidade.
Pecado Original
(Caetano Veloso)
Todo dia, toda noite
Toda hora, toda madrugada
Momento e manhã
Todo mundo, todos os segundos do minuto
Vivem a eternidade da maçã
Tempo da serpente nossa irmã
Sonho de ter uma vida sã
Quando a gente volta
O rosto para o céu
E diz olhos nos olhos da imensidão:
Eu não sou cachorro não!
A gente não sabe o lugar certo
De colocar o desejo
Todo beijo, todo medo
Todo corpo em movimento
Está cheio de inferno e céu
Todo santo, todo canto
Todo pranto, todo manto
Está cheio de inferno e céu
O que fazer com o que DEUS nos deu?
O que foi que nos aconteceu?
Quando a gente volta
O rosto para o céu
E diz olhos nos olhos da imensidão:
Eu não sou cachorro não!
A gente não sabe o lugar certo
De colocar o desejo
Todo homem, todo lobisomem
Sabe a imensidão da fome
Que tem de viver
Todo homem sabe que essa fome
É mesmo grande
Até maior que o medo de morrer
Mas a gente nunca sabe mesmo
Que que quer uma mulher
Referências
AFFORTUNATI MARTINS, Alessandra. Freud entre duas mulheres: implosão do Édipo e conflito de classes. Revista Cult, maio, 2021.
BLEICHMAR, Emilce dio. El feminismo esponataneo de la histeria – estudio de trastornos narcisistas de la feminidad. DF Méxio: Distribuiciones Fontamara, 1997.
CIXOUS, Hélène. O riso da Medusa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022.
HETI, Sheila. Maternidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J.- B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
NUNES ALEXIM, Silvia. Afinal, o que querem as mulheres? Maternidade e mal-estar.
SOLER, Colette. Homens, Mulheres. São Paulo: Aller editora, 2021.
VELOSO, Caetano. Pecado Original, letra e música.