Trabalhos selecionados para Colóquio Interno – 1° Semestre 2023
Ciclo I
Myriam Pascale Pélissier
Título: Decifrando em psicanálise
Um ano antes de iniciar o processo seletivo para estudar no CEP, comecei a questionar o fato de fazer minha análise em português e não em francês, minha língua materna. Na época, estava considerando alguns projetos de reconversão profissional e vinha progressivamente me dedicando quase que exclusivamente à tradução e ao ensino do francês. Desde o fim dos meus estudos, eu trabalho com tradução, do inglês, o primeiro idioma estrangeiro que aprendi, para o francês e do português brasileiro para o francês. Sendo a relação estreita que tenho com o Brasil onde vim estudar mais de 20 anos atrás, onde morei várias vezes até vir me instalar definitivamente 10 anos atrás para finalmente obter a naturalização brasileira há 2 anos, acabei com o tempo me especializando na tradução do português brasileiro para o francês. Sempre adorei esse delicado artesanato de decifrar e codificar. Devido às minhas atividades profissionais no mundo corporativo, traduzi muitos textos ditos técnicos sobre economia, tecnologia… Nesses casos, a tradução é quase mecânica. Com o tempo, tive a oportunidade de traduzir textos cada vez mais literários que requerem uma tradução que se torna uma verdadeira interpretação. O questionamento sobre o idioma na análise surgiu após terminar a tradução de um romance. Era um sonho meu, traduzir um dia um romance brasileiro. O livro já estava escolhido há muito tempo, já havia realizado uma primeira passagem de decifração, codificação. E fazia três anos que o projeto estava parado por causa de uma palavra. Uma palavra só que constitui um capítulo inteiro do livro. Graças a um amigo que tinha lido o livro, no Natal de 2020 descobri o significado dessa palavra e o quanto ela era central na obra da autora. Portanto, em março 2021, consegui terminar o trabalho de tradução, mandar para uma primeira revisão, trocar mensagens com a autora e propor o projeto para publicação. Deixei passar algumas semanas para sair das tensões e emoções: finalmente, tinha terminado a tradução e tinha até conseguido falar com a autora!
E um dia, li a versão francesa. Foi um choque imenso.
Parecia um monstro criado por mim que tinha se tornado estranho, muito mais poderoso que sua versão original.
Ofereci esse livro na sua versão brasileira para vários amigos brasileiros ao longo dos anos. O efeito é sempre brutal e todos são atravessados por essa história. A versão francesa que apenas alguns amigos franceses leram teve o mesmo efeito. Mas para mim foi diferente, foi surpreendente e assustador: era como se o português colocasse um amortecedor nas palavras deixando a realidade numa distância tolerável, como se o francês trouxesse a realidade para a superfície de forma bem mais crua e nua. Foi assim que surgiu o meu questionamento inicial: se eu faço a minha análise em português, será que estou utilizando um amortecedor de realidade?
As primeiras aulas da formação em psicanálise do CEP tratam da história da psicanálise e do primeiro caso estudado por J. Breuer e S. Freud: Anna O. Essa primeira paciente, que deu origem aos Estudos sobre a histeria*, perdeu durante mais de um ano o uso da sua língua materna, o alemão, e passou a utilizar o inglês, e certas vezes o francês e o italiano, durante o tratamento até recuperar o uso da sua língua materna. Ao descobrir esse caso, me veio instantaneamente a seguinte pergunta: e se Anna O. não falasse outro idioma além do alemão, o que teria acontecido? Não há como elaborar nenhum tipo de hipótese. Trata-se do caso específico de uma jovem histérica, caso que foi sujeito à controvérsias que permanecem até hoje. No entanto, logo na primeira aula o meu questionamento se transformou: será que uma língua estrangeira pode também ser uma ferramenta, um recurso adicional?
Anna O. que luta com a doença e nós deixa os primeiros apelidos do que viria a ser a psicanálise: “talking cure” e “chimney sweeping”, atropela as minhas dúvidas e me deixa a intuição de que o que eu estava considerando ser apenas uma resistência, é bem mais complexo.
Prosseguimos as aulas, e um caso estudado no texto Lembranças encobridoras* me chama atenção. O Freud está discutindo a interpretação de lembranças infantis provenientes dos Henris como lembranças encobridoras. Uma dessas lembranças é a de uma criança quebrando um galho de árvore durante um passeio e sendo ajudada por alguém. E ele indica então que:
“… eu teria condições de fazer uma interpretação, se a pessoa envolvida não fosse um francês”…“Em alemão, “quebrar um galho” é uma expressão vulgar muito comum para designar masturbação. A cena equivaleria, portanto, a recolocar na primeira infância uma tentação a se masturbar – com a ajuda de alguém – efetivamente ocorrida num período posterior”… “nossa interpretação permanece como uma brincadeira, já que não sabemos se um francês reconheceria uma alusão à masturbação nas palavras “casser une branche d´un arbre” ou em alguma expressão apropriadamente retificada.”
Vale notar aqui que o significado de “casser une branche” para mim é resolver ou ajudar a resolver um problema ou uma situação difícil, expressão tipicamente brasileira.
O que levanta portanto uma outra questão: além da escolha do idioma na fala do analisando, quando o analisando está mergulhando em vários universos linguísticos, existe também a questão da interpretação pelo analista desta fala, como também dos atos falhos, dos lapsos, dos sonhos, das lembranças encobridoras, dos chistes,….
Falando de chiste… Quando escutei um professor citar esse texto do S. Freud O chiste e sua relação com o inconsciente* pela primeira vez, pensei: o que vem fazer o schiste (francês para xisto) no pensamento freudiano? Eu vim estudar geologia no Brasil 20 anos atrás, eu associo automaticamente o som de chiste ao xisto. Mesmo agora, sabendo que se trata de um “mot d´esprit”, toda vez que me deparo com o chiste, preciso decifrar e codificar: chiste, não é xisto, é mot d´esprit.
Ao avançar nas aulas, chegamos ao conceito das pulsões. Fomos avisados antes da aula propriamente dita sobre o texto Os instintos e suas vicissitudes*: “trieb” foi traduzido pulsão ou instinto em português. Como me disse um aluno de francês, professor em psicologia social na USP, ao me recomendar a tradução mais recente da Companhia das Letras para estudar os textos de Freud: o importante é você entender o conceito. O instinto designa comportamentos pré-formados fixos e próprios de uma espécie animal. A pulsão é um impulso interno com um objeto não pré- determinado biologicamente e cujo destino é satisfazer um desejo de forma variável. A pulsão subverte o instinto.
A primeira reação de uma pessoa que trabalha com tradução é a surpresa: como assim? Após mais de um século, a tradução de um conceito central da psicanálise não foi resolvida? Como indicam Laplanche e Pontalis no Vocabulário da psicanálise*, em francês coexistem também as palavras “pulsion” e “instinct” para a tradução de “trieb”, no entanto, as traduções recentes consolidaram o uso de “pulsion”. O que surpreende é que a versão inglesa, que Freud revisou, utiliza até hoje a palavra “instinct”…
Então, decifrando, codificando: chiste, não é xisto, é mot d´esprit, instinto, não é instinto, é pulsão.
E percebo agora que os colegas também estão decifrando: quando chegamos na aula sobre o texto Os instintos e suas vicissitudes*, o professor tinha a versão As pulsões e seus destinos*. Uma colega no meio da aula perguntou: “estou confusa, é instinto ou é pulsão no final?”
Preparando a aula seguinte, me vejo já preocupada com o título inscrito na programação: Repressão*… Repressão, regressão, vou me perder. Já vimos resistência, recalque. Lendo o artigo, descubro que a repressão é o recalque. Que alívio!
Decifrando, codificando: chiste, não é xisto, é mot d´esprit, instinto, não é instinto, é pulsão, repressão, não é repressão, é recalque que é “refoulement” (em português, associo recalcada com recatada…do lar… Prefiro o termo que conheço há mais tempo).
Laplanche e Pontalis escreveram duas entradas no Vocabulário da psicanálise*, uma para o recalque e uma outra para a repressão, para descrever a diferença entre os dois conceitos. O que me chama atenção aqui é que o tema da tradução, das línguas estrangeiras está intrinsecamente ligado ao desenvolvimento da psicanálise. Mesmo ainda considerando surpreendente o uso até hoje de certas traduções já discutidas e consideradas inadequadas para certos conceitos, consigo entender que como o Freud elaborou a base da psicanálise ao longo da sua vida e precisou realizar modificações a partir de 1920 com o desenvolvimento da 2a tópica, certas palavras continuam até hoje com várias traduções já que os conceitos correspondentes sofreram alterações e são discutidos até hoje. Em Vocabulário da psicanálise*, por exemplo, os autores notam que certos tradutores franceses de Freud escolheram traduzir “trieb” por “pulsion” para o conceito de pulsões até 1920, e com a introdução da última teoria das pulsões a partir de 1920 no artigo Além do princípio de prazer*, eles preferiram falar de “instinct de vie” e “instinct de mort” para os conceitos de pulsões de vida e de morte.
No meio desse turbilhão de palavras e conceitos novos e estranhos, me vem um sorriso lendo a seguinte introdução de Laplanche e Pontalis no artigo sobre a repressão :
“O termo repressão é usado com frequência em psicanálise, mas o seu uso está mal codificado”.
Os colegas, os psicanalistas, nós estamos decifrando, codificando,…
Retomo a minha associação do chiste com o xisto passando pelo “schiste” para fazer um vínculo com a observação do Claude Lévi-Strauss que “disse que não se pensa a mesma coisa quando se diz “cheese” ou quando se diz “fromage””1. Quando se diz “cheese”, eu vou sorrir para o objetivo da câmera, quando se diz “fromage”, já estou sentido o cheiro de certos queijos franceses com água na boca…
Os autores de O Babel do Inconsciente* se perguntam portanto:
“Como se articulam, entre os níveis consciente, inconsciente e pré-consciente a relação entre representação de coisa e representação de palavra, quando as palavras são jogadas em muitas línguas?”. “Como se construirá, então, na mente do sujeito poliglota ou polílingue, o patrimônio linguístico e ideativo que, de uma parte, constitui-se com a constelação da “representação de objeto” – com todos os seus elementos acústicos, visuais, táteis,… – e, de outra, com o específico conjunto sonoro (fonético e fonemático), sensomotor”… “e com a relativa imagem visível conectada com a palavra lida ou escrita?”
“É claro que, de fato, quando as coisas têm mais de um nome proveniente de línguas diferentes, esta rede associativa se complicará e se enriquecerá com inumeráveis trajetos.”
Se a principal e até a única regra em psicanálise é a da livre-associação, como essa associação livre se articula para o analisando que usa vários idiomas e como o analista a interpreta, a decifra?
Outro questionamento que deixo em aberto aqui. Neste primeiro trabalho, pretendo deixar postas algumas questões, encontrar algumas pistas de reflexões e levantar algumas curiosidades, deixando para um trabalho futuro a possibilidade de aprofundar o tema da língua estrangeira e da psicanálise com mais domínio teórico.
A essa altura da minha reflexão, um fato muito curioso para mim é que os precursores da psicanálise não tenham abordado o problema específico do polilinguismo na psicanálise, nem do ponto de vista clínico nem do ponto de vista teórico. Já vimos acima que desde o início e até hoje, a questão da tradução em outros idiomas foi e é central e complexa para o desenvolvimento da psicanálise. O que é ainda mais surpreendente é que quando olhamos a primeira comunidade psicanalítica, se tratam de pessoas poliglotas, muitas delas mudaram de país várias vezes na vida para trabalhar, estudar ou fugir.
A cidade de Viena do fim do século 19 e do início do século 20 é a capital cultural, artística e intelectual da Europa onde várias nacionalidades se misturam, a elite intelectual domina vários idiomas. Vejamos agora alguns exemplos de personagens importantes dos primeiros anos da psicanálise que circulavam em vários idiomas e culturas. Karl Abraham nasceu na Alemanha numa família judaica e era apaixonado por línguas. Além do alemão, ele falava inglês, espanhol, italiano, francês, dinamarquês e holandês e podia expressar-se em latim e grego. Sandór Ferenzci nasceu na Hungria, imigrou na Polônia, estudou em Viena e fez sua análise em inglês com o Freud. Mélanie Klein nasceu em Viena, fez sua primeira análise com o Ferenzci em Budapeste e depois com o Abraham em Berlim. Marie Bonaparte nasceu na França e falava várias línguas incluindo o inglês e o alemã, ela fez sua análise com o Freud em alemão em Viena. Freud nasceu numa família judaica, na cidade de Freiberg, no então império Austríaco. Ele chegou aos 4 anos em Viena onde estudou e desenvolveu a maior parte das suas atividades. A língua materna do Freud era o alemão e ele falava inglês como toda a elite de Viena da época. Enquanto ele desenvolvia a sua teoria em alemão, sua língua materna, progressivamente ele vai aceitar cada vez mais analisandos americanos e ingleses por questões econômicas2. E essa mudança vai lhe causar certas dificuldades como indica a biografia de Peter Gray (1988):
“Seus erros deixavam-no exasperado consigo próprio – e com o inglês. No outono de 1919 contrata um professor “para polir meu inglês”. Mas os resultados das aulas deixam-no insatisfeito. “Escuto seis ou
oito horas por dia pessoas falando em inglês britânico ou americano”, observa ele em 1920, “e deveria ter feito maiores progressos com meu inglês, mas aos sessenta e quatro anos é mais difícil aprender do que aos dezesseis. Chego num certo nível e ali devo parar.” Os analisandos que em suas comunicações murmuravam ou usavam muita gíria, eram particularmente difíceis para ele. “Estou preocupado com meu inglês”, comentou com Ernest Jones ao discutir dois pacientes que Jones havia mandado para ele, “ambos falam um idioma abominável”. Eles o faziam ter “saudades” da “correção refinada” de David Forsyth, um médico inglês que trabalhou com Freud por algum tempo no outono de 1919, tendo conquistado a gratidão de Freud por seu vocabulário refinado e sua clareza de enunciação.
Suas falhas linguísticas, muito menos danosas do que ele supunha, tornaram-se algo como uma obsessão. “Eu ouço e falo com ingleses de quatro a cinco horas por dia”, escreveu para seu sobrinho em julho de 1921, “mas nunca irei aprender essa m…a de língua.” Um pouco antes, havia proposto para Leonhard Blumgart, já pronto para vir a Viena para sua análise, uma espécie de pacto de autodefesa: “Seria para mim um grande alívio se falássemos em alemão; do contrário, você não deverá criticar o meu inglês.” Essas sessões em inglês deixavam-no tão cansado, confessou a Ferenzci no final de 1920, “que no fim do dia não sirvo para mais nada”. Isso o aborrecia tanto que o levava a repensar a questão.”
Os precursores da psicanálise mergulhavam em universos linguísticos diversos e estavam visivelmente cientes de alguns obstáculos ao usar uma língua estrangeira em análise como ilustra essa passagem acima sobre o uso do inglês em análise pelo Freud. No entanto não existem nesse início da psicanálise textos que tratam do tema da língua estrangeira e do seu papel no funcionamento psíquico.
Podemos encontrar, algumas considerações inclusive do próprio Freud sobre as variações possíveis de interpretação em certas línguas, como citei acima no artigo das Lembranças encobridoras* onde ele discute se a interpretação poderia ser válida com um analisando francês. Existem comentários similares na Interpretação dos sonhos* e em O chiste e sua relação com o inconsciente* tratando das alternativas de interpretação de sonhos, de duplos sentidos, piadas, jogos verbais em função do idioma.
O surgimento da questão do uso da língua materna e de línguas estrangeiras na terapia psicanalítica vai iniciar com a migração forçada de psicanalistas fugindo o crescimento do nazismo na Europa no final da década de 1930. Podemos destacar alguns autores a serem aprofundados num próximo trabalho: Erwin Stengel 4, Edith Buxbaum 5, Ralph Greenson 6, Eduardo Krapf 7, Daniel Lagache 8.
Quero aproveitar esse último artigo do D. Lagache que discute e utiliza as referências anteriores, inclusive a do E. Krapf que conduziu observações clínicas interessantes: ele era um judeu alemão poliglota que emigrou para Buenos Aires em 1934 num clima cosmopolita onde era comum falar, além do espanhol, francês, inglês e alemão.
Assim, D. Lagache indica pistas de reflexões sobre o uso das línguas na análise:
Tradução livre do francês: “Na análise poliglota, a escolha da língua e a passagem de uma língua à uma outra não devem ser consideradas como simples ajustes objetivos da comunicação verbal; elas traduzem movimentos da resistência, da transferência e das fantasias do paciente. Mais próxima dos conflitos primitivos, a língua materna é talvez a única capaz de dar um acesso completo a eles; mas a natureza mesma desses conflitos pode produzir a rejeição da língua materna ou até proibir o seu uso. A língua eleita é a do eu ideal e contem portanto grandes possibilidades de defesa e de fuga. A língua de uso oferece na maioria das vezes a possibilidade de um compromisso realista.”
“Recorrer à uma língua secundária, que não é nem a língua materna nem a língua melhor falada, oferece regularmente uma possibilidade de defesa, porque suas palavras veiculam menos associações e menos afetos. Mas ela não é somente isso; quando ela é a língua do analista, o seu uso pode ser também uma tentativa de aproximação e uma demanda de amor.”
Como mencionando anteriormente, eu limitei intencionalmente as referências bibliográficas e também os desenvolvimentos teóricos que tratam das línguas estrangeiras e da psicanálise para focar nas minhas reflexões ao iniciar a minha formação em psicanálise com os primeiros conceitos que vimos até o momento neste primeiro semestre. A partir da segunda metade do século 20, esse tema vai ser bastante aprofundado a partir dos trabalhos iniciais citados anteriormente e também com o desenvolvimento da linguística.
Para encerrar essas primeiras considerações e caminhar na minha reflexão sobre decifração, codificação quero utilizar agora o exemplo de um grande escritor. Como Freud na sua época, ao estudar o impacto de uma segunda língua estrangeira na análise, vários psicanalistas estudaram autores que utilizaram vários idiomas. Estudei o Samuel Beckett na escola e sempre adorei a sua literatura. Sabia que ele tinha escrito diretamente em francês apesar de ele ser irlandês mas não conhecia a sua biografia. Ele nasceu na Irlanda de uma mãe obsessional que mantinha um relacionamento tirânico e possessivo com os filhos e de um pai ausente. Após várias tentativas de fugir da mãe trabalhando em Londres, na Alemanha e na França para sempre voltar para Dublin, quando a guerra é declarada em 1939, ele emigra definitivamente em Paris dizendo: “Prefiro a França em guerra à Irlanda em paz”. Segundo o psicanalista P.J. Casement que fez um ensaio (1982)
sobre o autor, o Samuel Beckett não apenas procurava um refúgio geográfico na França mas também um refúgio numa segunda língua. De fato, Samuel Beckett começou a escrever em inglês e a partir do final da década de 1930, ele produz sua obra principal em francês. A partir da morte da sua mãe, ele vai se dedicar a traduzir ele mesmo quase toda a sua produção literária, para o inglês as obras inicialmente criadas em francês e para o francês as obras escritas originalmente em inglês3. “Qualquer pessoa que compare os dois textos, inglês e francês, poderá comprovar que não se trata de
uma simples tradução, mas de um completo reescrever do texto original.”…
“Parece, assim, que no mundo interno de Beckett existem duas matrizes, dois espaços, relacionados com suas duas línguas.” …
E não é “o repúdio da língua materna e a adoção de uma nova língua, mas este vai-e-vem linguístico” 3.
Ao descobrir essas considerações sobre a vida e a obra do Samuel Beckett, surgem várias dúvidas sobre as implicações quando pensamos nos conceitos de Ego, SuperEgo e Id. Será que o SuperEgo é amortecido ou até inexistente numa língua estrangeira? Certos sujeitos podem articular vários Egos? Um Ego para cada idioma? Ou um Ego híbrido atravessado por vários idiomas que se articulam numa língua própria criada pelo sujeito?
O caminho se faz caminhando, e ao tentar decifrar, abriu-se novos caminhos codificados a serem decifrados.
Não é por acaso que escolhi o Samuel Beckett. Ele mudou de país, adotou uma nova língua e começou a traduzir quando sua mãe faleceu. Eu também. E a semelhança das experiências para aqui.
O livro que menciono na introdução é Uma duas* da Eliane Brum. O descobri ao chegar no Brasil 10 anos atrás e o escolhi para ser o primeiro romance que iria traduzir. No entanto, eu iniciei sua tradução para o francês 5 anos depois, alguns meses após a morte da minha mãe.
Uma duas* conta a história de duas mulheres, Laura e Maria Lúcia. Duas mulheres que são mãe e filha. E a palavra que constitui o capítulo 22 que eu tive tanta dificuldade em decifrar e codificar é “voragem”.
Voragem vem do latim vorago e não chegou até o francês onde não existe uma tradução direta. No universo da Eliane Brum, voragem ocupa um lugar específico.
Ao refletir sobre o decifrar em psicanálise, é essa palavra que me vem em mente. Essa palavra que demorei tanto para decifrar e codificar, tanto que hoje ela tem sentidos que a tradução que escolhi para ela em francês parece conter um amortecedor de realidade…
Ao discutir a tradução de voragem por maelstrom em inglês, Eliane Brum escreve em 2014:
“No confronto com a morte, eu percebi que há certas realidades que só a ficção suporta. Há certas realidades que precisam ser inventadas para poderem ser contadas”…
“Uma voragem, um maelstrom.”
“Porque nos arrasta, nos traga, nos assinala e nos devolve a nós mesmos. Nos devolve a nós mesmos sem palavras, porque a nossa tragédia é a de que as palavras são insuficientes para dar conta da vida.”
… “Assim como a tradução é no fundo impossível, porque voragem e maelstrom jamais serão o mesmo.” …
“Voragem é a minha palavra preferida entre todas porque ela é, para mim, a própria literatura. E, ao mesmo tempo, aquilo que não vira literatura, aquilo que permanece fora das palavras.”
Decifrar em psicanálise seria tocar aquilo que permanece fora das palavras?
Referências
Estudos sobre a histeria – J. Breuer & S. Freud – 1893/1895 Lembranças encobridoras – S. Freud – 1899
O chiste e sua relação com o inconsciente – S. Freud – 1905
Os instintos e suas vicissitudes / As pulsões e seus destinos – S. Freud – 1915 Vocabulário da psicanálise – Laplanche e Pontalis – 1924
Além do princípio de prazer – S. Freud – 1920
O Babel do inconsciente – J. Amati-Mehler, S. Argentieri, J. Canestri – 1990 Uma duas – Eliane Brum – 2011
- – O Babel do inconsciente – J. Amati-Mehler, S. Argentieri, J. Canestri – 1990 – Capítulo 5, p 135
- – O Babel do inconsciente – J. Amati-Mehler, S. Argentieri, J. Canestri – 1990 – Capítulo 2, p 55
- – O Babel do inconsciente – J. Amati-Mehler, S. Argentieri, J. Canestri – 1990 – Capítulo 9, p 206 – 211
- – On learning a new language – E. Stengel – 1939
- – The role of a second language in the formation of Ego and SuperEgo – E. Buxbaum – 1949
- – The mother tongue and the mother – R. Greenson – 1949
- – The choice of language in polyglot psychan
Ciclo II
Rodrigo Augusto Falcão Vaz
Título: Aspectos linguísticos em Lacan e Nietzsche
Ao subverterem conceitos linguísticos, cada um a seu tempo, Nietzsche e Lacan, trouxeram para o centro da discussão da Filosofia e da Psicanálise o impacto das palavras para a formação da moral e do pensamento.
Lacan utilizou-se dos conceitos de significado e significante de Saussure1, porém invertendo o sentido proposto originalmente: Para ele haveria uma ascendência do significante sobre o significado2, pois “o significante, por sua natureza, sempre se antecipa ao sentido, desdobrando como que adiante dele sua dimensão” (LACAN, 1998, p. 505).
Lacan inverte o algoritmo saussuriano:
Nietzsche era considerado, para alguns, mais um poeta do que um filósofo, dado o uso peculiar das palavras e a forma da escrita adotada em alguns de seus livros. Um assunto recorrente em seus escritos é a crítica que faz à linguagem como instrumento de expressão de pensamentos.
1 “o signo lingüístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica (…) A ideia de `mar’ não está ligada por relação alguma interior à seqüência de sons m-a-r que lhe serve de significante; poderia ser representada igualmente bem por outra seqüência, não importa qual; como prova, temos as diferenças entre as línguas e a própria existência de línguas diferentes”. (SAUSSURE, p. 80-82)
2 “significante sobre significado, correspondendo o `sobre’ à barra que separa as duas etapas” (LACAN, 1998, p. 500)
A escrita de Nietzsche, por meio de metáforas e parábolas, não é construída apenas por uma preocupação estética, mas também constitui uma forma de desconstruir os significados das palavras, que são imprecisas e limitadas. Assim, criticar palavras como “eu” ou “sujeito” é também criticar o próprio conceito de verdade que se pressupõe a partir dos termos. Desconstruir a linguagem para desconstruir formas cristalizadas de pensar. O método genealógico de Nietzsche propõe uma análise dos processos históricos que originaram valores e linguagem, para então criticá- los e transvalorá-los.
Da mesma maneira, Lacan propõe que “O significante como tal não se refere a nada, a não ser que se refira a um discurso, quer dizer, a um modo de funcionamento, a uma utilização da linguagem como liame” (LACAN, 1982, p. 43). E avança com a concepção de cadeia significante como uma associação entre significantes, unidos em combinações variadas, como “anéis cujo colar se fecha no anel de um outro colar feito de anéis”. A atividade inconsciente expressa pela linguagem se dará por conexões associativas entre significantes em sucessão, formando uma cadeia que assume um sentido único elaborado por aquele que fala. Ou seja, tudo depende do contexto e de como os significantes são sucessivamente concatenados.
A partir de uma visão estruturalista, Lacan argumenta que o inconsciente será formado também por essa cadeia de significantes, os quais serão absorvidos pelo aparelho psíquico, criando sentidos próprios, independentemente de signos ou significados.
Para Nietzsche, o efeito da linguagem também se desdobra em outros empregos para além da expressão, impregnando também os valores e pensamentos daquele que fala. O filósofo constata que a origem da linguagem se dá a partir da atividade gregária como instinto de sobrevivência. No aforismo 354, de A Gaia Ciência, Nietzsche sustenta que o homem passou a comunicar-se por meio da linguagem por conta de
uma terrível obrigação, que por longuíssimo tempo governou o ser humano: ele precisava, sendo o animal mais ameaçado, de ajuda, de proteção, precisava de seus iguais, tinha de exprimir seu apuro e fazer-se compreensível – e para isso tudo ele necessitava antes de consciência.
Foi, portanto, por essa necessidade de consciência que houve uma sobreposição da racionalidade em desfavor do corpo, que passou a ser desprezado. E desse movimento nasceu o ascetismo e os ideais ascéticos que subjugaram o corpo para afirmação de um espírito. A atividade
humana, que até então era a de observar a natureza e experimentar de forma singular as possibilidades e formas de viver, foi reduzida a palavras e conceitos, como se não houvesse mais nada a observar, pois todo o conhecimento não estaria mais no mundo, mas no espirito, no pensamento.
Nietzsche dispara contra o ascetismo e linguagem, a partir de uma escrita revolucionária que lhe permite ao mesmo tempo sugerir uma nova forma de interpretar o mundo, bem como criticar a fala, expressando-se de forma similar à de um artista.
Em estudo sobre as metáforas em Nietzsche, Sarah Kofman afirma que, para o autor, a Filosofia não é nem ciência e nem poesia e que as mudanças de estilo eram intencionais e serviriam para “salvar o leitor de um entendimento errado sobre existência de um estilo em si.”3 Segundo a filósofa, a escrita por meio de metáforas, em vez da escrita por meio de conceitos, é uma espécie de jogo de escrita de Nietzsche, que permite uma nova arte de interpretar o mundo, a comunicação de uma nova perspectiva.
A autora prossegue explicitando a predileção de Nietzsche pela música, como a expressão artística mais privilegiada para expressar a “verdade do mundo”. Aborda, ainda, a crítica do autor à escrita conceitual, que, além de não ser capaz de reproduzir gestos e tons de voz, petrifica a “música do mundo”. O “conceito” que, em si, é produto da atividade metafórica (pois a atividade metafórica está na origem de todo o conhecimento e atividade, já que lida com imagens registradas em nossas mentes), não é nem uma ideia a priori, nem um modelo. O conceito4 é fruto de um acúmulo de impressões similares, às quais são atribuídas uma falsa unidade, com um caráter genérico.
Nietzsche, por outro lado, constrói novos conceitos e, portanto, é um criador de metáforas da metáfora. Ao refutar o sentido comum de algumas palavras e dar-lhes outros significados mais precisos de acordo com seu pensamento, permite expressar a “essência” do “seu mundo”.
3 “Nietzsche intentionally diversifies his styles in order to save the reader from misunderstanding a single style as a style in itself: Good style in itself – a piece of pure folly, mere “idealism”, on a par of with the beautiful in itself, the good in itself, the thing in itself” KOFMAN, Sarah. Nietzsche and Metaphor. Tradução para o inglês de Duncan Large. Stanford University Press, 1993, p. 3.
4 “The concept is neither an a priori idea nor a model, as it claims to be. It is a lasting impression which became retained and solidified in the memory. It is compatible with very many appearances and is for this reason very rough and inadequate to each particular appearance.” KOFMAN, Sarah. Nietzsche and Metaphor. Tradução para o inglês de Duncan Large. Stanford University Press, 1993, p. 35.
Para Lacan, a utilização de metáforas e metonímias também possui funções outras além da retórica e da estética: Estariam relacionadas ao deslocamento e condensação, conceitos freudianos fundamentais para a compreensão da lógica desejante a partir da escuta analítica.5
Indaga o autor, referindo-se à metáfora: “como pode ser que a linguagem tenha seu ponto máximo de eficácia quando ela consegue dizer alguma coisa dizendo outra?”
Em “O estádio do espelho”, por exemplo, o olhar-se no espelho assume outros sentidos além do visual. Representação da imagem do eu, identificação de si a partir de uma imagem outra em reflexo, mas que se dá no campo do consciente por meio de estímulos sensoriais. Lacan também faz um estudo da obra de Freud, a partir do conceito de metáfora, para estabelecer o caráter simbólico do pai em Totem e Tabu.
A maior parte da transmissão de conhecimento humana e quase toda experiência de comunicação tem sido intermediada pela linguagem falada ou escrita, de tal maneira que o pensamento do homem e seus valores passam a ser agenciados por tal intermediário, que deixa de ser mero instrumento para ser conteúdo e fonte de conhecimento. Um homem é também a sua língua e a cultura de um povo é também a sua língua falada e escrita, tendo assim a linguagem um papel cada vez mais abrangente na experiência humana. Sob esse aspecto, o indivíduo tem cada vez menos espaço para criar novos valores, pois nasce e cresce em um mar de conceitos pré- estabelecidos e verdades absolutas que o impedem de ter consciência de que as palavras são apenas conceitos, metáforas de metáforas.
Assim, silêncio e afastamento tornam-se desejáveis, pois são espaços de alívio de um mundo pautado pela linguagem gregária. A clínica psicanalítica também pode contribuir para a prática de restituir ao sujeito a capacidade de elaborar de maneira original seus conteúdos latentes. Nesse espaço seguro, o pensamento entorpecido pela forma de pensar das palavras, poderá dar lugar a outras experiências estéticas com o mundo, apartado das amarras antes impostas.
Além de se aproximarem os autores em relação à crítica à linguagem, tanto Nietzsche quanto Lacan, são reconhecidos pela erudição e dificuldade que causam aos seus leitores, principalmente
5 Na condensação, uma representação única funciona como um ponto central de diversas cadeias de significantes, e no deslocamento, uma representação é deslocada de um objeto originário a um segundo objeto por um deslizamento de energia de investimento ao longo de uma via associativa.
àqueles ávidos por encontrar sentidos óbvios em todas as coisas. A profundidade dos escritos desses autores merece reflexão, um “ruminar”:
Um aforismo, se bem cunhado e moldado, não foi ainda “decifrado” pelo fato de ser lido; ao contrário, esse é o início de sua interpretação e, para tanto, é requerida uma arte de interpretação. (…) É certo que, para exercitar a arte da leitura, há algo que se torna necessário, que hoje em dia foi bem esquecido – e ainda necessitará de tempo até que minhas obras sejam “legíveis” – é necessário ser quase uma vaca para isso, ou pelo menos, não ser um “homem moderno”: é um ruminar…6
6 NIETZSCHE, Friederich. Genealogia da Moral. Tradução de Attila Blacheyere – 1a Edição. Rio de Janeiro: Edbolso, 2016,
p. 15.
Referências
KOFMAN, Sarah. Nietzsche and Metaphor. Tradução para o inglês de Duncan Large. Stanford University Press, 1993.
LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra: livro para toda a gente e para ninguém. Tradução de José Mendes de Souza. Edição Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2016.
. Also sprach Zarathustra / Thus Space Zarathustra, Bilingual Edition Translated by Thomas Common. Doppeltext
. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou. Tradução de Lourival de Queiroz Henkel – Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
. Genealogia da Moral. Tradução de Attila Blacheyere – 1a ed. Rio de Janeiro: Edbolso, 2016.
Figuras retiradas do site: http://pepsic.bvsalud.org/
Ciclo III
Vanessa Pinto Fernandes de Sá
Título: Meu nome, minha herança?
“Vocês sabem, como analistas, a importância que tem em toda análise o nome próprio do sujeito. Vocês têm sempre que prestar atenção em como se chama o seu paciente. Nunca é indiferente.”
“O que é o nome próprio?” “Onde está o sujeito aí dentro?”
(LACAN, 1961-62, Seminário 9: A Identificação”).
Em As Pequenas Memórias7, José Saramago nos conta que seu nome deve ter sido o “único caso, na história da humanidade, em que foi o filho a dar o nome ao pai”. Diz o escritor português que, indo o progenitor dele ao cartório do Registro Civil para registrá-lo, encontrou o funcionário que lá trabalhava bêbado e este, “sob os efeitos do álcool e sem que ninguém se tivesse apercebido da onomástica fraude, decidiu, por sua conta e risco, acrescentar Saramago ao lacônico José de Sousa” que seu pai pretendia que fosse. Sousa era, afinal, a insígnia desta família simples de camponeses, do qual seu pai se orgulhava, insígnia esta que o mestre português pareceu fazer pouco caso, ao afirmar que, se tivesse sido registrado corretamente, se veria um “lacônico” José de Souza.
O literato relata como, graças a este “intervenção por todas as mostras divina”, mais explicitamente falando, devido a Baco, deus do vinho, veio a “inaugurar”, dentro da família Souza, um “ramo” Saramago.
- As Pequenas Memórias, José Saramago, Cia das Letras
É por ironia do acaso que o pequeno José, ao ser matriculado na escola pública, vem a descobrir- se Saramago, para desgosto de seu pai. Este, para adequar-se ao sistema legal português, precisou acrescentar a seu próprio nome o “Saramago” que apenas o pequeno José portava. É graças a essa reviravolta do destino e ao embriagamento do tabelião que o escritor português se faz José Saramago, e não José de Souza.
Vale imaginar quais as consequências desta inversão – um filho dando o nome ao pai, adulto feito – para a família Sousa, cujo progenitor e seu filho passaram a carregar o Saramago. Do pai do autor português pouco se sabe, a não ser de sua contrariedade quanto ao feito do tabelião, que o obrigou a conviver com o Saramago, estrangeiro a suas origens. José, entretanto, parece ter se “apropriado” prontamente desse sobrenome-alcunha pelo qual seus familiares eram conhecidos na aldeia (Saramago é uma erva daninha), o ter agregado para si como se sua família sempre o tivera portado e, por toda a vida, orgulhou-se dele. Com todo o sarcasmo que lhe é peculiar, o escritor nos diz que o Saramago lhe poupou, no futuro, de ter “de inventar um pseudônimo para, futuro havendo”, assinar os seus livros. Se diz, ainda, sortudo por “não ter nascido em qualquer das famílias da Azinhaga que, naquele tempo e por muitos anos mais, tiveram de arrastar as obscenas alcunhas de Pichatada, Curroto e Caralhana”.
Ninguém escapa do nome próprio. O dicionário nos aponta que nome próprio é o substantivo que distingue e identifica algo de forma específica, como uma pessoa, um lugar ou entidade geográfica. O ato da nomeação, portanto, é o momento em que se identifica, distingue e individualiza o ser que chega ao mundo, em que se dá a ele um lugar, para inscrevê-lo na trama geracional que o precede, ou seja, na ordem das relações humanas.
Todos temos alguma história para contar sobre o nosso nome. Cada um deles carrega motivações parentais (conscientes e inconscientes), nos determinando com os desejos e as cores do imaginário de quem nos nomeia. É por meio da nomeação que a família reconhece a alteridade daquele ser que acaba de chegar e que, ao ser invocado por este nome, começa a reconhecer que há um “não- eu” que o cerca.
Saramago faz troça do fato de ter sido ele a “nomear” o pai porque, nas sociedades ocidentais, cabe a ele, o pai, esta função (ou quem a exerce). Entendido aqui nomear como o ato simbólico jurídico de inscrever o ser recém-nascido na ordem legal e social (a certidão de nascimento).
Ninguém existe, ao menos do ponto de vista legal, sem esse registro oficial. É a partir dele que somos designados socialmente.
Cabe, entretanto, às figuras parentais/cuidadoras a escolha do nome. A eleição do nome carrega enorme carga simbólica. Tem a ver com o desejo parental, tem a ver com a cultura na qual o infans está inserido, tem a ver com história e ascendência familiares daquela criança, tem a ver, inclusive, como era no passado, com traços físicos do bebê.
O psicanalista argentino Juan Eduardo Tesone nos diz em seu livro En las Huellas del Nombre Propio8: lo que outros inscriben em nosotros: “A escolha do nome marca a distância entre a procriação biológica e a filiação. A atribuição de um nome ao filho sanciona o feito de que a filiação não é um fato biológico, mas sim simbólico. Trata-se de uma escolha que o coloca em um dispositivo institucional em que cada um tem seu lugar na estrutura familiar”.
O próprio Freud é amostra do que nos coloca Tesone. Ele rompeu com a tradição judaica de nomear os filhos em referência aos pais, dando lugar a seu desejo de lhes dar nomes de pessoas a quem tinha muita admiração. Cito dois exemplos trazidos por Tesone:o filho Martin, nomeado em referência ao grande Jean-Martin Charcot, que foi seu professor, e a filha Matilde, homenagem de Freud à mulher do parceiro e amigo Breuer.
“Eu queria que seus nomes não fossem escolhidos segundo a moda do dia, mas sim pela lembrança de pessoas queridas. Os nomes transformam as crianças em revenant(Freud, 1900, A Interpretação dos Sonhos9)
Ao dar-lhes nomes de pessoas por quem nutria tanto afeto (pessoal e intelectual), Freud deixa claro que tinha a intenção de tornar os filhos almas encarnadas (revenant) dessas figuras.
Este não foi o único caso na vida do pai da psicanálise.
- En Las Huellas del Nombre Propio – Los que los otros inscriben em nosotros, Juan Eduardo Tesone, Letra Viva
- A Interpretação dos Sonhos, Obras Completas, Vol.4. Cia das Letras
Aos 23 anos, Freud alterou a grafia de seu nome de Segismund para Sigmund. Tisone afirma que muito se especulou sobre isso e que foi o psicanalista francês Wladimir Alexandre Granoff o que mais parece ter se aproximado do motivo de tal mudança: “Se Freud considera necessário modificar seu nome é porque não gozava dele”10.
Aos 10 anos, também experienciou o ato da escolha do nome de seu irmão. Tisone conta que o pai de Freud convocou um “Conselho de Família” para que todos os membros o ajudassem a escolher o nome do filho que estava para nascer. Freud tinha grande admiração pelo militar e conquistador Alexandre III, o Grande. Ao recitar os feitos do general no “conselho”, acaba por ganhar o direito de chamar ao irmão mais novo de Alexander.
Percebe-se a importância que os nomes próprios tiveram na vida do psicanalista, desde muito jovem. Talvez por isso tenham tido também importância em sua teorização. É o que se vê, por exemplo, em Totem e Tabu11 . Ali, ele retoma importantes trabalhos antropológicos para apontar a importância que o nome próprio adquire em diferentes povos primitivos. A força simbólica e representativa trazida pelo nome é tão grande em Papua Nova Guiné, cita Freud, que os habitantes da Nova Bretanha acreditam que pronunciar o nome da irmã ou do irmão equivale a consumar o incesto. Falar o nome dele ou dela é “tocar” o seu corpo. Para selvagens, escreve ele, o nome é parte essencial da personalidade de um homem.
Já em O Esquecimento de Nomes Próprios, contido em A Psicopatologia da Vida Cotidiana12, Freud analisa o esquecimento (o seu esquecimento) de um nome próprio (Signorelli) e as formações substitutivas que ocorrem na tentativa de lembrá-lo. Ao detalhar as várias tentativas de se lembrar do nome Signorelli, ele parece notar como os nomes próprios tendem à fragmentação. É com esses fragmentos que são produzidas formações substitutivas. Ele também nota haver uma relação entre nome e recalque. O recalque se presentifica, no caso dos nomes próprios, como esquecimento.
- Granoff, W. Filiations, Ed. de Minuit, Paris, 1975
- Freud, S. Obras Completas Volume 11: Totem e Tabu, Contribuição à História do Movimento Psicanalítico e Outros Textos (1912-1914)
- Sobre a Psicopatologia daVidaCotidiana (1901). Ed. Standard, vol VI.Imago
Nome próprio e história do sujeito
Por que nos chamamos como chamamos? Esta é uma pergunta que nos acompanha desde sempre. Sejam expressamente declaradas, estejam elas ocultas ou veladas, ali, no nome escolhido pelos pais, encontramos desejos que operam como forças ativas. Tesone nos aponta que o sentido do nome próprio, “parcialmente consciente, mas com amplas ramificações no inconsciente do doador, age como um ponto de ancoragem para a personalidade do receptor, podendo, inclusive, sem que ele perceba, influenciar seu destino”.
Um exemplo do que nos traz o psicanalista e pesquisador argentino é um artigo divertido publicado em 1994 pela revista científica The New Scientist, o qual discutia o que os autores chamaram de “determinismo nominativo”, ou seja, a hipótese de que as pessoas de alguma forma gravitam em torno de áreas de trabalho que se encaixam com seus nomes.
Um dos primeiros discípulos de Freud, o médico ucraniano-austríaco William Stekel já dizia, em 1911, em seu texto Die Verpflichtung des Namens (A obrigação do nome; tradução minha, a partir do inglês13), ter observado haver uma conexão entre nome e neurose e nome e profissão. Cita, por exemplo, que um dos grandes compositores da era romântica, o alemão Schumann, dizia-se chateado por não ter um nome musical. Afirma, ainda, que, como todo artista é um pouco neurótico e desempenhando o nome algum papel na dinâmica da neurose, Bach compôs uma fuga a partir das letras de seu nome.
Dado que se sabe que os nomes carregam desejos que lhes são transmitidos pelos pais, não seria surpreendente que a vida de muitas pessoas de fato orbite em torno deles e, por vezes, que elas os transformem em mandatos, “deixando-os (os nomes)” guiar suas escolhas. Poucas coisas ilustram tão bem isso quanto o quadro “Predestinado”, de José Simão. Imitando a mãe dos “predestinados”, o jornalista diz: “Meu filho, você vai se chamar…… e quando crescer vai ”.
Stekel entendia que o nome impõe quase que uma obrigação ao sujeito. “A maioria dos pacientes sente-se obrigado diante do nome e preocupa-se em cumprir essa obrigação”, escreve ele (tradução minha, do inglês). A tal transformação do nome próprio em mandato, como dizia acima. Como bem diz Tesone, “o nome torna-se o traço escrito da encruzilhada do desejo dos pais”. Mas
- https://docplayer.org/184190884-Die-verpflichtung-des-namens-von-dr-wilhelm-stekel-wien-progress- translated-by-richard-g-klein.html
cabe à criança, por meio de sua singularidade, reapropriar-se de seu nome próprio e, a partir dele, com o auxílio dele, inscrever a sua marca, o seu “próprio texto”, uma reescrita que é contínua enquanto houver vida.
José apropriou-se do Saramago como se este tivesse sido um legado de sua família àquele menino. Usou e abusou do sobrenome e, ao fim, parece mesmo grato a Baco por ter “cruzado” o caminho de seu pai. Diferentemente de seu genitor, nunca torceu o nariz ao Saramago que passou a acompanhar a sua vida. Integrou-o de tal forma a si que não lhe foi preciso, como ele mesmo conta, inventar um pseudônimo. Saramago lhe foi ofertado como nome próprio- pseudônimo.
E quando acontece de a nomeação não vir carregada de desejo, mas, ao contrário disso, não marcar um lugar para o infans? Tesone, em seu livro, traz uma vinheta clínica em que duas garotinhas, Cécile e Aline, chegam a um abrigo maltratadas, por parecer do Juiz de Menores. As meninas, gêmeas univitelinas, são absolutamente idênticas, trajam a mesma cor de vestido. Imagens especulares de si mesmas, apenas seus nomes garantiam a elas distinção, reconhecimento de identidades próprias. Mas eis que os funcionários do abrigo, fascinados pela semelhança (quase um “duplo”), chamavam a ambas, indiferenciadamente, de Céline (mistura de Cécile e Aline). Se o nome particulariza, distingue, separa, convocar duas garotinhas como se estas fossem uma só, des-subjetiva.
A escritora mineira Carla Madeira faz uso de uma situação semelhante em “Véspera”14, para contar a história de Abel e Caim, gêmeos idênticos nomeados pelo pai em um ato de vingança à mãe dos meninos, e de como o desejo (ou a falta dele) implícito dos pais naqueles nomes marcou a vida dos pequenos de forma indelével. Tonico, o tal pai, também devoto de Baco, assim como o tabelião português, desejava a mulher, “depois de tantos anos, como da primeira vez em que a viu. E desejava ser respeitado”. Não era. Custódia, a esposa, tornara-se devota motivada pela dor, a dor da impotência de não conseguir engravidar. Enfiara a cara na Bíblia, conta Madeira. A religiosidade a poupava das noites ao lado de um bêbado, a pregação sem fim, do desgosto de ser ver como “mercadoria estragada”.
- Véspera, Carla Madeira, Record
Tonico “alimentava uma antipatia sem tamanho pela religiosidade de Custódia, creditava a esse excesso de Deus toda escassez de alegria na mulher e, consequentemente, na própria vida. Tinha ímpetos de desacatar o que era sagrado para ela e começou a preparar em fogo baixo uma vingança bem fria”.
Eis que, movido pelo ressentimento, pelo sentir-se desprezado e escanteado pela mulher que amava, decide atingi-la onde “a dor dela mais seria capaz de doer”: a sua religiosidade. Uma vingança gestada a frio. Ao invés de Pedro e Paulo, como planejavam, registra os bebês como Abel e Caim, nomes que, para alguém que havia mergulhado de corpo e alma nos ensinamentos bíblicos, carregam enorme carga. Consta, segundo o texto bíblico, que o drama dos irmãos, filhos de Adão e Eva, é tido como o primeiro assassinato entre os homens.
Ao saber do ato do marido, declara a ele que, ao nomeá-los Abel e Caim, o pai havia sido posto um peso na vida deles. Toma, então, o ato do marido como destino, como se os meninos jamais pudessem reescrevê-lo a partir de suas histórias. Ao pensar que pudesse afastar as crianças dessa “herança maldita”, começa, nesse momento, a traçar para eles um legado tão maldito quanto a herança que ela buscava fugir.
“Mais do que o medo do filho extraviado, existia o medo de reconhecê-lo, de súbito, em um dos gêmeos. Em um gesto, em uma palavra, em um olhar… saber qual dos dois era Caim. Custódia era uma mãe atormentada por duas tragédias: a do filho que mata e a do filho que é morto. Na companhia desse pavor, tampou os olhos com mãos firmes e, por não ver ninguém, achou que não seria vista…
Foi exatamente isso o que Custódia fez: reduziu o funcionamento do mundo ao seu ponto de vista. Um esforço descomunal para que os meninos se tornassem iguais, indistinguíveis, e assim se tornassem um só: Abel. As mesmas roupas, o mesmo quarto, os mesmos brinquedos compartilhados e o mesmo nome. Um nome ‘Abel’ em dois corpinhos, que um dia seriam dois desejos e, depois disso… sabe-se lá quanta bagunça. Mas Custódia não antecipava o que viria pela frente… Urgente era o que estava diante dela: a lambança do bêbado insuportável que ela decidiu limpar pondo uma fraldinha nos olhos de todos! Seria razoável, contudo, não julgá-la apressadamente. Que mulher religiosa dormiria tranquila tendo um filho chamado Caim e outro
Abel? Nem mesmo um ateu convicto passaria por debaixo dessa escada assobiando.”
Lacan nos disse, em 1975, que é a nossa família que fala por nós quando nascemos. Ao sermos falados, “fazemos, dos acasos que nos levam, alguma coisa de tramado. Com efeito, há uma trama, chamemos isso de nosso destino”15 . Nesse sentido, como coloca Tesone, é possível – e de que forma – inscrevermos sobre esse nome que nos é falado e doado o nosso próprio texto?
Em Véspera, Carla Madeira parece nos dizer algo semelhante ao que nos traz o psicanalista argentino: há uma des-subjetivação do sujeito na medida em que não se abriu um espaço no núcleo familiar para que Abel e Caim o ocupassem. Ao contrário. Ao negar-lhes os nomes com os quais foram registrados e ao nomeá-los com um único nome (Abel), torna os dois meninos “um só” em “dois corpinhos”, imagens espelhadas de um único ser. Como se constituir sujeito, como constituir uma subjetividade se nem os pais sabiam distingui-los? O desejo que lhes chega por meio da mãe é o do desejo de apagamento daqueles “nome-enquanto-crianças”.
O que resta a elas, então? Penso que não se identificarem ao nome com que foram “rebatizadas” (Abel), mas ao seu duplo, ao seu espelho (o irmão). Àquelas crianças, mais especificamente, a uma delas, resta falar de si por meio do outro. É como se aqueles sujeitinhos não existissem (de fato, foram “desaparecidos” pela mãe), mas só pudessem se reconhecer a partir de seu duplo, de seu espelho.
As crianças foram crescendo “emboladas”, escreve Carla Madeira. Como lhes convinha, ora sendo Abel, ora sendo Abelzinho.
Para terror da mãe, que acreditava poder alterar o curso da história, a realidade se impõe quando os meninos passam a frequentar a escola (tal como acontece com José Saramago), já que se era exigida a certidão de nascimento. Ali, nasceria Caim, para desgosto de Custódia. Ali, renasceria Abel. Abel, nome que traz em torno de si a mitologia do homem assassinado pelo irmão, do homem mais fraco, daquele que sucumbiu frente ao irmão.
- Assuntos de família em Psicanálise, Lilany Pacheco(http://www.lacan21.com/sitio/2017/04/10/familias-toxicas/?lang=pt-br)
Como coloca Lacan, a constituição subjetiva se dá “a partir de uma operação de identificação simbólica, que coloca o sujeito em uma relação de dependência ao significante”16. Os meninos irão se apropriar dos significantes contidos nos nomes Abel e Caim – e reforçados, ainda que inconscientemente pela mãe – e a partir disso constituirão suas subjetividades. Tamanha é a ligação com os significantes contidos em Abel e Caim que o primeiro vai “morrendo em vida” à medida que Caim floresce. Caim, com sua inteligência, sua perspicácia, seu afeto e solidariedade pelos outros, “mata” (apaga) o tímido, acanhado, inseguro irmão Abel.
Interessante notar que o significante Abel só se faz presente quando outro significante (Caim) se apresenta para se contrapor a ele. É neste instante que se coloca a contraposição de significantes contidos naqueles nomes. E isso vai marcar a vida dos meninos para sempre. Restou a Abel carregar o peso de um nome fadado ao desaparecimento, de uma vida professadamente destinada a ser superposta pela do irmão. O peso da “profecia” foi tanto que ele não foi capaz de fortalecer o seu eu, não foi capaz de reescrever a própria história a partir disso e ressignificar um significante bíblico mitológico.
“Mais eis que um acontecimento, um único acontecimento, captura o tempo e o aprisiona. O puçá da vida, com sua rede inescapável, baila à espreita…Entre gestos, olhares, palavras, vazios, intensidades e, súbito, como se fossem borboletas, recolhe a véspera de uma dor, o desamparo sem palavras, a sutil alegria, a faísca cadente, o assombro fugidio e o desejo… E, assim, aprisiona o tempo e o faz corpo marcado.” (Carla Madeira, Véspera)
- Considerações sobre a noção de nome próprio em Lacan: entre o significante e a letra, Livia Campos e Silva, Isalena Santos Carvalho e Daniela Scheinkman Chatelard
Ciclo IV
Andrea Bárbara Lopes de Azevedo
Título: “Loucura? Quem sabe lá”: Lima Barreto e seu Diário do Hospício
“Eu tinha tudo, ou tenho tudo, para não sofrê-las, tanto mais que não as provoquei. Sou instruído, sou educado, sou honesto, tenho procurado o mais possível ter uma vida pura. Parecia que sendo assim, que — sendo eu um rapaz que, antes dos dezesseis anos, estava numa escola superior (que todos me gabavam a inteligência, e mesmo até agora ninguém nega) — estivesse a coberto de tudo isso. Mas eu e a sorte, a sorte e eu, nos juntamos de tal sorte, nos irmanamos, que vim a passar por transes desses”17.
O trecho anterior é de autoria de Lima Barreto, escritor fundamental da tradição literária brasileira, responsável por romances que antecederam o movimento modernista no Brasil e conjugavam imagens da vida urbana na cidade do Rio de Janeiro no século XIX, a constituição da República e a instalação de órgãos estatais e de organização social e simbólica do Brasil. Lima, um autor negro, que tinha apenas sete anos quando ocorrera a abolição da escravidão, passou por inúmeras dificuldades que lhe impuseram a época, seu meio social e a cor de sua pele. O trecho refere-se ao diário escrito por Lima na ocasião de sua segunda internação no aparato psiquiátrico existente na época, um hospício18.
Lima fora internado por ocasião de delírios que o acometeram após o exagero no consumo de bebidas alcoólicas. Ao menos, é este o discurso que ele e seus biógrafos nos contam. À luz dessa
17 Barreto, Lima. “Diário do Hospício”. In: . Diário do Hospício e Cemitério dos vivos. São Paulo: Cosac Naify, 2010,
p. 82, parte V.
18 Diário do Hospício traz as anotações da segunda internação do escritor, que ocorreu de dezembro de 1919 a fevereiro de 1920. A primeira internação de Lima ocorrera de agosto a outubro de 1914.
observação, cabe destacar que, a despeito da crença social de que um “diário” pudesse ser um retrato fiel da realidade, este gênero de escritos, de acordo com a sociologia das produções artísticas, envolve a intenção do autor de trazer um sentido, de racionalizar os acontecimentos em retrospectiva e prospectar um trajeto futuro19. Biografias e autobiografias ― este último sendo o gênero ao qual pertence os diários ― são uma tentativa de totalização do eu, participando assim da produção de uma ilusão biográfica20.
Do ponto de vista psicanalítico, que é o que me importa aqui, também se manifesta o Eu como uma função limitada que não pode ser confundida com a realidade. Freud, já no Projeto21, apresenta o Eu como organizador, facilitador e inibidor das energias psíquicas – as denominadas catexias. O Eu designa-se ali como uma fonte de defesa primária das pulsões e das forças externas; o Eu seria, portanto, uma mediação construída pelo sujeito para defender-se do mundo interno e externo.
Em Introdução ao narcisismo, Freud nos apresenta que o Eu pode ser objeto ― objeto de amor pelo sujeito, estando disponível a este para maior ou menor investimento libidinal22. O Eu é percebido de formas distintas relacionadas aos primeiros investimentos libidinais que o sujeito recebe quando bebê dos seus cuidadores. Desse modo, o que Eu venha a querer ou como o Eu se vê são desdobramentos simbólicos da sua constituição na primeira infância. Na segunda tópica, Freud vem a ressaltar a relação direta do Eu com o mundo externo a fim de limitar e modificar as paixões do Id a partir dessa relação. O Eu seria a projeção psíquica “sob uma superfície corporal”23. Percorrendo estes breves destaques dos textos freudianos, desdobramos que o Eu aparece como uma instância de defesa, elástica, sujeita a maior ou menor investimento libidinal e que está em permanente conflito e intervenção do mundo externo e do mundo interno. O Eu não corresponde nem à verdade, nem ao real, mas nos dá notícia das lutas e defesas que trava o sujeito. O Eu é apenas parte do sujeito, ele não é seu todo ou o sujeito em si mesmo. Não se trataria de uma ilusão
— tal como argumenta a teoria sociológica ―, mas, sobretudo, o Eu se expressaria como uma projeção parcial do sujeito.
19 Bourdieu, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: Amado, J.; Ferreira, M. M. Usos e abusos da história oral. 8a. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 183-191.
20 Id. Ibid.
21 Freud, S. “Projeto para uma Psicologia Científica (1895)”. In: . Obras Completas de Sigmund Freud, v. 1. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1977, p. 395-517.
22 Freud, S. “Introdução ao narcisismo (1914)”. In: . Obras Completas, v. 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, 45-48.
23 Freud, S. “O Eu e o Id (1923)”. In: . Obras Completas, v. 16. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 32.
Nos estudos de Jacques Lacan, em seu retorno a Freud, o Eu surge como instância imaginária que constitui-se na primeira infância, tendo sua origem explicada pelo mecanismo do estádio do espelho. Quando em impotência motora e em dependência dos cuidadores para alimentar-se, o bebê desenvolve a imagem do seu Eu como “matriz simbólica”24. Nesta infância tão dependente, constituiria-se a imago do Eu que o corpo do bebê será portador e que seria responsável frente ao mundo externo25. Em Lacan, o Eu se apresenta como imagem composta pelo outro, no caso seus primeiros cuidadores e a cultura que os circunda.
Seria esse Eu imagem, limitado, defensivo e enaltecedor que podemos encontrar nos escritos autobiográficos (ou na clínica psicanalítica), e que Lima Barreto transparece em seu diário. Os escritos de Lima me interessam porque ali podemos acompanhar a experiência do escritor e sua percepção do dispositivo psiquiátrico, mas sobretudo porque explicitam, ainda que de maneira projetiva e imagética, a luta que trava seu Eu com os delírios paranoicos que o acometem e o fizeram adentrar no aparelho psiquiátrico. Na citação que iniciei este ensaio, vê-se a reflexão de Lima sobre sua crença de que a posse de recursos como boa educação, ser considerado inteligente e o que constituiria uma noção de racionalidade o protegeria a passar por “transes”. O que seriam esses transes? O que na narração de Lima nos conta da formação do seu psiquismo? Lima Barreto poderia ser considerado um psicótico? Os escritos dos demonstrariam estarmos frente a um neurótico visitando crises psicóticas? Quero aqui fazer breves considerações sobre esses pontos.
Minha hipótese é que Lima não traria em si uma estrutura psicótica, mas sim uma estrutura neurótica. Há algumas pistas em que esta hipótese apoiam, em especial, as reflexões e constantes dúvidas que o escritor faz sobre sua condição. Sabe-se pela abordagem freudiana que, enquanto na neurose, o Eu recalca uma parte do Id em função de sua dependência da realidade26, na psicose, o Eu retira-se da realidade à serviço do Id27. Conforme Freud argumenta ao analisar a paranoia que acometia o juiz Schreber, na psicose, há uma projeção da percepção interna: “Uma percepção interna é suprimida e, em substituição, seu conteúdo vem à consciência, após sofrer certa deformação, como percepção de fora”28. Lacan denominou tal mecanismo de foraclusão. Os impulsos internos do sujeito seriam projetados para fora e vistos como forças externas ao sujeito,
24 Lacan, J. “O estádio do espelho como formador da função do eu”. In: . Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998,
p. 98.
25 Id. Ibid., p. 100.
26 Freud, S. “A perda da realidade na neurose e na psicose (1924)”. In: . Obras Completas, v. 16. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 215.
27 Id., Ibid.
28 Freud, S. “Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia (Dementia paranoides) relatado em autobiografia (1911)”. In: . Obras Completas, v. 10. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 88.
distorcendo sua percepção sobre a realidade. Na neurose, por se tratar de algo recalcado ou esquecido do sujeito, o Eu guardaria histórias imprecisas sobre os acontecimentos, dúvidas sobre a realidade, sobre si. Na psicose, o sujeito não duvidaria do que percebe sobre a realidade e sobre si. Há a certeza de que os acontecimentos são externos, gerados por outro. O Eu estaria certo do que narra.
Nos relatos de Lima Barreto, não encontramos a certeza, mas uma dúvida persistente sobre a razão do seu estado, e também culpa e responsabilização ― mecanismos associados à neurose ― por sua própria desfortuna. Pode-se acompanhar esta reflexão em dois trechos. Diz o escritor num momento:
“De mim para mim, tenho certeza que não sou louco; mas devido ao álcool, misturado com toda espécie de apreensões que as dificuldades de minha vida material há seis anos me assoberbam, de quando em quando dou sinais de loucura: deliro”29.
Em outro trecho especialmente melancólico, escreve:
“Agora, que creio ser a última ou a penúltima, porque daqui não sairei vivo, se entrar outra vez, penetrei no pavilhão calmo, tranquilo, sem nenhum sintoma de loucura, embora toda a noite tivesse andado pelos subúrbios sem dinheiro, a procurar uma delegacia, a fim de queixar-me ao delegado das coisas mais fantásticas dessa vida, vendo as coisas mais fantásticas que se possam imaginar.
No começo, eu gritava, gesticulava, insultava, descompunha; dessa forma, vi-as familiarmente, como a coisa mais natural deste mundo. Só a minha agitação, uma frase ou outra desconexa, um gesto sem explicação denunciavam que eu não estava na minha razão.
O que há em mim, meu Deus? Loucura? Quem sabe lá?”30
Nos trechos, ainda que seja preciso considerar o mecanismo da ilusão biográfica e também o Eu projetado e defendido, ouve-se um sujeito que sabe como começam seus delírios, um sujeito que tem certeza numa hora que não é louco e, em outro momento, coloca em dúvida a afirmação
29 Id., Ibid., p. 44
30 Id., Ibid., p. 65.
de sua racionalidade. Ouve-se, ainda, um sujeito que vislumbra os momentos em que passa a ver e falar de “coisas fantásticas”; um sujeito que, ainda que duvide, consegue distinguir seu momento delirante e sua racionalidade.
Em outro trecho, Lima dá sinais de neurose ao ressentir-se por estar entre “loucos” e promove mesmo uma descrição classificatória dos tipos de sujeitos delirantes que habitam em sua companhia o hospício:
“Raro é o seu hóspede com quem se pode travar uma palestra sem jogar o disparate. Ressinto-me muito disto, pois gosto de conversar e pilheriar; e sei conversar com toda a gente, mas, com esses que deliram, outros a quem a moléstia faz tatibitate, outros que se fizeram mudos e não há nada que os faça falar, outros que interpretam as nossas palavras de um modo inesperado e hostil, o melhor é calar-se, pouco dizer, mergulhar na leitura, no cigarro […]”31
É preciso dizer que a insistência em se analisar, em entender-se que permeiam seus escritos também me parece marca de uma estrutura neurótica. Numa das entradas no diário, ele apresenta marcas consistentes nos discursos da neurose, ao explicitar reflexões, dúvidas e o arrependimento culpado:
“O dia é de tédio e eu procuro meios e modos de fugir dele, de voltar-me para mim mesmo e examinar-me. Não posso e sofro. Arrependo-me de tudo, de não ter sido outro, de não seguir os caminhos batidos e esperar que eu tivesse sucesso, onde todos fracassaram”32.
Se Lima Barreto demonstra proximidade maior a um estado neurótico, por que os delírios o atravessam? O escritor está sempre em reflexão sobre o que poderia ter originado seu estado e uma das respostas que ele nos oferece é o alcoolismo. Em um trecho, Lima brinca “Houve quem perguntasse: bebemos porque já somos loucos ou ficamos loucos porque bebemos?”33. Sabemos que o uso de substância pode sim desencadear crises psicóticas, mas também parece que ouvimos aqui que Lima também usava do álcool como um pacificador de suas reflexões.
31 Id. Ibid., p. 58.
32 Id., Ibid., p. 94.
33 Id., Ibid., p. 128.
Ouve-se ainda, em seu diário, Lima recordar sua história familiar, o que nos dá notícia de caminhos possíveis que o fizeram margear a psicose: seu pai foi almoxarife na Colônia dos Alienados na Ilha do Governador e, em 1902, passa a sofrer de delírios aposentando-se de maneira precoce. Frente a um pai enfermo numa cama, delirante, o escritor diz que a sua casa o aborrecia, que o amedrontavam as moléstias domésticas e sua falta de dinheiro e que sua busca por bebidas ocorriam a fim de evitar voltar para sua casa no subúrbio e assim, na cidade, conhecia “o chopp, o whisky, as noitadas”34. Talvez aqui se desdobre a tentativa de Lima de recalcar o próprio pai delirante, a própria família e suas necessidades que, como ele argumenta em inúmeros trechos, eram contraditórias com seu desejo de ser reconhecido, de alcançar a fama pelas letras, de ser comentado, lido35. Freud nos dá pistas para essa reflexão ao argumentar que a diferença entre neurose e psicose é diminuída pela existência do mundo da fantasia no neurótico que pode tentar “substituir a realidade indesejada por outra mais conforme aos desejos”36. Assim, a hipótese que levanto é que Lima margeou a psicose em uma posição estrutural de neurótico pelo conflito estabelecido entre a vida ideal que fantasiava e a realidade frustrante de sua família e condição social.
Lima conta que foi internado no hospício por ação da polícia. Como está no trecho citado, bêbado e em delírio, o escritor caminha até a polícia para declarar “verdades” e “ideias fantasiosas”. Talvez seja uma análise selvagem de minha parte, mas, ouso aqui levantar a hipótese de que, Lima, frente ao pai, aquele que exerce a lei, o patriarca da família, acamado e impossibilitado de ser a ordem, tenha se dirigido à polícia em busca da interdição que o pai não mais representava e que, de algum modo, o escritor acreditava que esperavam dele.
Ser conduzido ao hospício pela polícia seria um fato curioso se não estivéssemos abordando a realidade social brasileira. Lima Barreto era um homem negro. Isildinha Nogueira, em sua obra A cor do inconsciente, argumenta que é recorrente a psicose que acometem as psiques dos corpos negros no Brasil. Numa persistente relação social que nega seu corpo, o sujeito de corpo negro atravessa de modo intermitente a despersonalização, resultando daí “um imenso pavor da loucura”. Não visto, não reconhecido, o sujeito se vê fragilizado em uma situação “em que nada separa o real do imaginário, as fantasias estão ‘concomitantemente dentro e fora’”37. Não podemos ignorar que
34 Id., Ibid., p. 61.
35 Lima ressalta no diário muitas vezes a decepção de ter seus livros pouco comentados pela crítica da época. Sobre sua obra mais célebre “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, o escritor queixa que nada foi dito dela, que não a criticaram, não a elogiaram, não a leram.
36 Freud, S. “A perda da realidade…”, op. cit., p. 220.
37 Nogueira, Isildinha Baptista. A cor do inconsciente. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2020, p. 124.
sendo um homem negro no período pós-escravidão, Lima foi atravessado pelos olhares culturais de seu tempo, olhares que estavam acostumados a objetificação e domínio sobre os corpos negros. Tais corpos não foram chamados a ser parte da sociedade republicana em formação. Assim, não posso me furtar a dizer que os delírios, conflitos familiares e fantasiosos nos quais Lima Barreto estava imerso e que afetavam sua psique vinham também da incompleta e terrível formação da sociedade brasileira.
Referências
Barreto, Lima. Diário do Hospício e Cemitério dos vivos. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
Bourdieu, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: Amado, J.; Ferreira, M. M. Usos e abusos da história oral. 8a. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
Freud, Sigmund. “O Eu e o Id (1923)”. In: . Obras Completas, v. 16. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
. “A perda da realidade na neurose e na psicose (1924)”. In: . Obras Completas, v.
16. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
. “Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia (Dementia paranoides) relatado em autobiografia (1911)”. In: . Obras Completas, v. 10. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
. “Introdução ao narcisismo (1914)”. In: . Obras Completas, v. 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
. “Projeto para uma Psicologia Científica (1895)”. In: . Obras Completas de Sigmund Freud, v. 1. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1977.
Lacan, Jacques. “O estádio do espelho como formador da função do eu”. In: . Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
Nogueira, Isildinha Baptista. A cor do inconsciente. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2020. Schwarcz, Lilia M. Lima Barreto: Triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
Ciclo V
Marcella Prado Ignácio
Título: Psicanálise: um exercício de hospitalidade
Nada tenho.
Nada me pode ser tirado. Eu sou o ex-tranho
O que veio sem ser chamado E, gato, se foi
Sem fazer nenhum ruído.
Paulo Leminski
O livro “Da Hospitalidade”, que será estudado, é dividido em duas sessões – a quarta e a quinta – ministradas por Jacques Derrida sobre o motivo da hospitalidade. Na quarta sessão intitulada “Questão do estrangeiro: vinda do estrangeiro”, proferida no dia 10 de janeiro de 1996, o filósofo inicia sua argumentação colocando em pauta a questão do estrangeiro e de sua vinda.
A questão do estrangeiro, não será ela uma questão de estrangeiro? Vinda do estrangeiro? Antes de dizer a questão do estrangeiro, haveria talvez então que precisar: questão do estrangeiro. A uma tal diferença de acentuação, como a entender? (DERRIDA, 2003, p. 31).
Prossegue Derrida: “a questão do estrangeiro é uma questão do estrangeiro, uma questão vinda do estrangeiro, e uma questão para o estrangeiro, endereçada ao estrangeiro.” (DERRIDA, 2003, p. 31). O estrangeiro é “aquele que coloca a primeira questão ou aquele a quem endereçamos a primeira questão.” (DERRIDA, 2003, p. 31). Assim, continua o filósofo:
Como se o estrangeiro fosse o ser-em-questão, o ser-questão ou o ser-em-questão da questão. Mas também aquele que, colocando a primeira questão, me põe em
questão. Pensamos na situação do terceiro e na justiça que Lévinas analisa como o
<<nascimento da questão>>. (DERRIDA, 2003, p. 31).
Tem-se, portanto, que a vinda do estrangeiro traz uma perturbação da ordem estabelecida com seus dogmatismos, na medida em que ele ignora tanto os costumes, como a língua, as leis nativas e traz o seu ponto de vista. Assim sendo, nesse sentido, a vinda do estrangeiro é o fato que opera o nascimento da questão a que mencionou Lévinas.
Para bem exemplificar esse posicionamento Derrida vale-se da filosofia grega e destaca que em muitas ocasiões nos diálogos de Platão, o Estrangeiro é o portador da questão: “[…] é muitas vezes o Estrangeiro (xenos) quem questiona. Ele transporta e coloca a questão.” (DERRIDA, 2003, p. 32).
Recorrendo a Platão no diálogo O Político, Derrida destaca que um “Estrangeiro toma ainda aí a iniciativa de colocar a questão temível, intolerável mesmo.” (DERRIDA, 2003, p. 34). Fica claro que é o estrangeiro quem questiona na medida em que altera a ordem e a lei do país que o abriga e prossegue destacando que Sócrates é quem perturba a ordem e, por isso, ele “faz de Estrangeiro sem o ser.” (DERRIDA, 2003, p. 35). Percebe-se em consequência que não é necessário ser estrangeiro efetivamente, sendo possível um estar estrangeiro. A rigor, o estrangeiro é aquele em desacordo com o local, na medida em que não segue o que está previamente estabelecido. Prosseguindo acerca da hospitalidade em sede grega, o autor destaca o posicionamento de Sócrates que, mesmo perante um tribunal e à mercê de um julgamento rigoroso, se autodeclara estrangeiro ao discurso jurídico, eis que ignora a linguagem técnica dos tribunais.
Declara ser <<estrangeiro>> ao discurso do tribunal, à tribuna dos tribunais: não sabe falar esta língua de pretório, esta retórica do direito, da acusação, da defesa e da advocacia; não possui a técnica, é como um estrangeiro. (DERRIDA, 2003, p. 35).
É importante destacar que um estrangeiro, diante da inabilidade da língua do país que o hospeda, corre um grave e grande risco de ficar sem defesa de direitos, uma vez que “o estrangeiro é primeiramente estrangeiro à língua do direito na qual o dever de hospitalidade está formulado, o direito de asilo, os seus limites, as suas normas, a sua polícia, etc.” (DERRIDA, 2003, p. 36). Nesse ponto o autor inicia a questão da hospitalidade e pergunta se é devido exigir ao
estrangeiro a compreensão da língua para que então ele possa ser acolhido, se não seria essa imposição uma violência?
Todavia, se superada a ignorância da língua, pergunta o autor: “Se ele já falasse a nossa língua, com tudo que isso implica, se nós partilhássemos já tudo quanto se partilha com uma língua, seria o Estrangeiro ainda um Estrangeiro e poderíamos nós falar a seu respeito de asilo ou de hospitalidade?” (DERRIDA, 2003, p. 36)
Reporta-se Derrida mais uma vez a Sócrates, que se queixa em seu julgamento por não ser tratado sequer como um estrangeiro. O filósofo grego “pede-lhes que o tratem como um estrangeiro em relação ao qual respeito é devido, como um estrangeiro por causa da idade e como um estrangeiro por causa da língua, da única língua a que está habituado; e é, ou a da filosofia, ou a de todos os dias, a língua popular (em oposição à língua sábia dos juízes ou da sofística, da retórica e da argúcia jurídica).” (DERRIDA, 2003, p. 36).
O comportamento de Sócrates é explicado na medida em que em Atenas era reconhecido “um direito de hospitalidade para com os estrangeiros” (DERRIDA, 2003, p. 38), existia portanto um direito dos estrangeiros, de sorte que em sendo um estrangeiro ou se visto como tal, o filósofo grego seria tratado com tolerância pelos jurados.
Note-se que em sede helênica apenas ao Estrangeiro (xenos) era oferecido o pacto e o direito à hospitalidade, o que não se estendia aos Bárbaros, ou seja, pessoas que não possuíam nome próprio e não eram capazes de falar a língua do país de acolhimento. Ao falar das instituições gregas, Derrida cita Benveniste: “xenos indica as relações do mesmo tipo entre homens ligados por um pacto que implica obrigações precisas que se estendem também aos descendentes.” (DERRIDA, 2003, p. 38).
Prossegue o autor tratando acerca da validade do pacto acima mencionado, no que tange à prole do estrangeiro, o que significa dizer se se estende aos seus, aos seus descendentes e à sua família. É importante destacar o dever de reciprocidade do compromisso, ou seja, que o estrangeiro tem direitos e reciprocamente tem deveres, “supõe o estatuto social e familiar dos contratantes, a possibilidade de serem chamados pelo próprio nome, de terem um nome, de serem
sujeitos de direito, interpelados e passíveis, imputáveis, responsáveis, dotados de uma identidade
nomeável, e de um nome próprio. Um nome próprio não é nunca puramente individual.” (DERRIDA, 2003, p. 39). Observa-se disso que a hospitalidade não é ofertada aos que não tem família, ao anônimo e tampouco aos bárbaros.
Verifica-se, pois, que na tradição cosmopolita, o estrangeiro que tem direito a hospitalidade é “alguém a quem a fim de o receber, se começa por perguntar o nome; pede-se-lhe para declinar a para garantir a sua identidade, como se faz com uma testemunha diante de um tribunal.” (DERRIDA, 2003, p. 41).
Conclui o autor a ideia de que há a lei da hospitalidade incondicional e as leis da hospitalidade condicional, sendo a primeira absoluta, geral e inclusiva e a segunda limitadora e concreta.
A partir desse ponto, passa-se a examinar a noção de privacidade e do privado, em relação às leis da hospitalidade condicional e à lei da hospitalidade incondicional, no sentido de ser o proprietário da sua casa, e em sendo o dono, decidir quem será nela recebido. “Começo a tomar por um estrangeiro indesejável, e virtualmente por um inimigo, quem invada a minha <<casa>> (chez-moi), a minha ipseidade, o poder da minha hospitalidade, a minha soberania de hospedeiro. Um tal outro torna-se um sujeito hostil de que corro o risco de me tornar refém.” (DERRIDA, 2003, p. 53). Nesse sentido, abre-se o privado ao outro, desde que observadas determinadas regras, ou seja, devendo-se manter o poder do hospedeiro.
Trata-se de uma lei paradoxal e perversora, num conflito direto com o que diz a hospitalidade dita tradicional e o poder, que em suma é a capacidade de decisão absoluta em quem receber em sua casa.
Não há hospitalidade (pas d’hospitalité), em sentido clássico, sem soberania do si (soi) sobre sua própria casa (chez-soi), mas como também não há hospitalidade sem finitude, a soberania não pode exercer-se senão filtrando, escolhendo, excluindo e violentando, portanto. A injustiça, uma certa injustiça, um certo perjúrio mesmo, começa imediatamente, desde o limiar do direito à hospitalidade. (DERRIDA, 2003, p. 53).
Observa-se, portanto, que o poder do hospedeiro corre um risco potencial, e se o hóspede é quem promove esse risco, por que deve-se colocar-se à prova? E “como distinguir um hóspede (guest) de um parasita?” (DERRIDA, 2003, p. 55). A rigor, a diferença é que o primeiro goza legitimamente do direito à hospitalidade, pode-se dizer que ele é um convidado. Por outro lado, o parasita é um intruso.
Em princípio, a diferença é estrita, mas para tanto é preciso um direito; é preciso submeter a hospitalidade, o acolhimento, as boas-vindas dadas a uma jurisdição estrita e limitativa. Nem todo recém-chegado é recebido como um hóspede se não se beneficiar do direito à hospitalidade ou do direito de asilo, etc. Sem esse direito, ele não pode introduzir-se <<em minha casa>> (chez-moi), na <<casa>> (chez-soi) do hospedeiro (host), senão como parasita, como hóspede abusivo, ilegítimo, clandestino, passível de expulsão ou de prisão. (DERRIDA, 2003, p. 55).
Pode-se dizer de imediato que existe um mutualismo entre hóspede e hospedeiro, no sentido de que um não há um sem o outro e ambos sentirão os benefícios e as dificuldades da convivência.
Cabe tratar do desenvolvimento tecnológico que reestruturou os espaços, “aquilo que constitui um espaço de propriedade controlado e circunscrito, é precisamente aquilo que o abre à intrusão.” (DERRIDA, 2003, p. 55), sendo exemplificado ainda no texto que não se trata propriamente de uma novidade, na medida em que toda casa precisa de uma porta e de janelas. Em resumo, Derrida diz: “é preciso deixar uma passagem para o estrangeiro.” (DERRIDA, 2003, p. 55).
É importante frisar que se o limite entre a casa e violação da casa, o privado e o público, for ultrapassado pelos próprios meios que a princípio serviriam para proteção, então não há mais a hospitalidade, sendo imperiosa a existência da casa para que haja o hóspede, uma vez que é nela que ele se adentra, de modo que se o espaço da casa foi violado, desaparecem as figuras de hospedeiro e hóspede e sem sentido fica falar-se em hospitalidade.
Derrida prossegue se reportando a Kant, em especial no texto Sobre um pretenso direito de mentir por humanidade (1797), onde o filósofo alemão defende que a verdade deve ser dita, em qualquer hipótese, ainda que se entregue o hóspede a seus assassinos. É flagrante o dilema
colocado entre mentir e salvar a vida ou dizendo a verdade e entregá-lo à morte, fica a pergunta de Derrida: “Será isto dizer que o hospedeiro kantiano trata aquele que alberga como um estrangeiro?” (DERRIDA, 2003, p. 60). E a resposta, prossegue o autor, é “sim e não” (DERRIDA, 2003, p. 60), na medida em que o hóspede é tratado como um ser humano, mas, ainda assim, segundo as normas da hospitalidade condicional, estando o hóspede ligado ao direito de hospedar-se e igualmente “a relação que o liga aos assassinos, à polícia ou aos juízes” (DERRIDA, 2003, p. 60), de sorte que ainda que bem recebido, do ponto de vista do direito, o hóspede é um estrangeiro e assim deve permanecer. E nesse tópico Derrida conclui: “A hospitalidade é devida ao estrangeiro, claro, mas permanece, assim como o direito, condicional, e portanto condicionada na sua dependência à incondicionalidade que funda o direito.
Na quinta sessão intitulada “Passo/não-passo de Hospitalidade”, Derrida pretende, nesse momento, especificar de que maneira a lei da hospitalidade incondicional se relaciona com as leis da hospitalidade condicional.
Derrida inicia sua argumentação apresentando uma primeira tese que será desenvolvida ao decorrer de sua conferência: que a hospitalidade seria impossível pela própria lei da hospitalidade; uma vez que a lei incondicional da hospitalidade exigiria que se transgredisse as leis da hospitalidade. Dito de outra maneira, haveria uma antinomia, ou seja, uma espécie de contradição insolúvel entre “por um lado A lei da hospitalidade, a lei incondicional da hospitalidade ilimitada […] e por outro lado, as leis da hospitalidade, estes direitos e deveres sempre condicionados e condicionais […].” (DERRIDA, 2003, p. 62).
Mais adiante, Derrida argumenta que, “os dois termos antagonistas desta antinomia não são simétricos” (DERRIDA, 2003, p. 63), ou seja, há neles uma hierarquia estando a lei da hospitalidade incondicional acima das leis. Mesmo estando em primeiro lugar na hierarquia, a lei incondicional da hospitalidade necessita das leis, uma vez que “ela não seria efetivamente incondicional […] se não devesse tornar-se efetiva, concreta, determinada, se tal não fosse o seu dever-ser. Ela correria o risco de ser abstrata, utópica, ilusória, e portanto de se tornar o seu contrário. Para ser o que é, a lei tem assim necessidade das leis, que, no entanto, a negam, a ameaçam em todo caso, por vezes a corrompem ou a pervertem”. (DERRIDA, 2003, p. 63).
A lei incondicional da hospitalidade é, por sua vez, “uma lei sem lei” (DERRIDA, 2003, p. 64), sem qualquer tipo de ordem ou dever, quer dizer, é “uma lei sem imperativo” e o “apelo que manda sem ordenar.” (DERRIDA, 2003, p. 64). Se praticada por dever, a hospitalidade perde sua identidade.
Para Derrida, a experiência do luto tem papel determinante para a definição do estrangeiro: “[…] é a experiência da morte e do luto, é em primeiro lugar o lugar da inumação que se torna, digamo-lo, determinante. A questão do estrangeiro diz respeito àquilo que se passa na morte e quando o viajante repousa em terra estrangeira.” (DERRIDA, 2003, p. 66). Para ele,
<<pessoas deslocadas>>, independentemente das circunstâncias que as levam a tal deslocamento, têm em comum, “duas nostalgias: os seus mortos e a sua língua.” (DERRIDA, 2003, p. 66), sendo a primeira referente ao desejo de retornar aos lugares onde estão os seus mortos sepultados, ou seja, onde têm sua última morada. Já a segunda é o reconhecimento da língua materna como sua última casa.
Atentemo-nos agora a segunda nostalgia demarcada anteriormente, a da língua. Para inaugurar essa questão, Derrida cita de forma breve uma resposta proferida por Hannah Arendt, que por não se sentir mais alemão “exceto pela língua”, como se a língua fosse somente um
<<resto>> do pertencimento à pátria. A língua não é somente a primeira e a última condição de pertencimento ao país de origem, ela é também, dirá o filósofo, “a experiência de expropriação, de uma irredutível exapropriação”, uma vez que, ele completa, “a língua dita <<materna>> é já
<<língua do outro>>”. (DERRIDA, 2003, p. 67).
O teórico propõe a seguinte questão: “a dita língua materna, não será ela uma espécie de segunda pele que transportamos conosco, uma casa (chez-soi) móvel? Mas também uma casa (chez-soi) inamovível, uma vez que se desloca conosco?”. Anne Dufourmantelle nos recorda uma importante fala de Derrida: “Sejam quais forem as formas de exílio, diz ele, a língua é o que guardamos para nós”. (DERRIDA, 2003, p. 21). A língua materna resiste às descolocações uma vez que ela se descola comigo.
Ela é a coisa menos inamovível, o corpo próprio mais móvel que permanece a condição estável, mas transportável, de todas as mobilidades: para utilizar o faxe ou o telefone <<celular>>, é preciso que eu transporte comigo, em mim, como eu, o
mais móvel dos telefones a que chamam uma língua, uma boca e uma orelha que permitem ouvir-se falar. (DERRIDA, 2003, p. 68).
Como foi dito na primeira sessão do livro, intitulada “Questão do estrangeiro: vinda do estrangeiro”, o estrangeiro é aquele que é forçado a dizer numa língua que não é sua, em que não domina suas regras.
O que assim não me larga, a língua, é também na realidade e por necessidade, para além do fantasma, o que não cessa de se afastar de mim. A língua não é senão a partir de mim. Ela é também aquilo de onde parto, aquilo que me desvia e me separa. (DERRIDA, 2003, p. 68).
A partir dessa afirmação de Derrida, pode-se compreender que a língua só exerce sua função enquanto dita, falada e escrita, uma vez que é a principal ferramente usada para dizer e pensar e por isso pode-se dizer que a língua também nos restringe. Em que língua então pode o estrangeiro responder as questões que lhe são endereçadas? Como é possível responder a todas elas e por elas? Em que língua pode o estrangeiro fazer perguntas?
De maneira geral, em “sentido lato”, a língua que utilizamos para nos dirigir e ouvir o estrangeiro “é o conjunto da cultura, são os valores, as normas, as significações que habitam a língua. Falar a mesma língua não é apenas uma operação linguística. Nela está o ethos em geral.” (DERRIDA, 2003, p. 86). Quer dizer, quem partilha da mesma cultura, mas não compartilha a mesma língua pode, nesse contexto, soar menos estrangeiro do que aquele que é habilitado a falar a mesma língua, mas que por sua vez não compartilha a mesma cultura, classe econômica e gostos, mesmo que esse seja um conterrâneo. Exemplifica Derrida:
A um certo nível pelo menos, eu tenho mais em comum com burguês intelectual palestino, de quem não falo a língua, do que com um determinado Francês que, por esta ou por aquela razão social, econômica ou outra, me será sob este ou aquele aspecto, mais estrangeiro. (DERRIDA, 2003, p. 86)
Por sua vez, quando considerada de forma “estrita”, a língua não tem o mesmo valor e não ocupa o mesmo patamar da nacionalidade ou da cidadania, mas apenas o idioma em que se é proferido o discurso. O filósofo novamente ilustra: “[…] um burguês intelectual israelita ser-me-á
mais estrangeiro do que um trabalhador suíço, um camponês belga, um boxeur de Québec ou um polícia francês” (DERRIDA, 2003, p. 86). Dessa última forma apresentada, a língua está atrelada, de diferentes formas, na “experiência da hospitalidade”, já que “o convite, o acolhimento, o asilo, o albergue passam pela língua ou pelo endereçamento ao outro. Como, de um outro ponto de vista, diz Lévinas, a linguagem é hospitalidade.” (DERRIDA, 2003, p. 87).
Questiona Derrida: “Aconteceu-nos sempre perguntar se a hospitalidade absoluta, hiperbólica, incondicional, não consiste antes em suspender a linguagem, uma certa linguagem determinada, e mesmo o endereçamento ao outro.” (DERRIDA, 2003, p. 87). Isso porque o estrangeiro está sujeito, refém da língua do outro. Já que o diálogo com o outro se dá pelo interesse de explorar o estrangeiro, então a hospitalidade hiperbólica seria não haver nenhum tipo de endereçamento ao outro. O hóspede é abrigado para que ele devolva o lar ao hospedeiro, e, por essa razão, este o aguarda ansioso.
Voltemo-nos a primeira nostalgia das <<pessoas deslocadas>>, como dito anteriormente, o desejo de retornar para onde estão sepultados os seus mortos, tendo em vista que a última morada destes representa um ponto de referência para o estrangeiro, “a habilidade de referência para o che-soi, a cidade ou o país onde os pais, o pai, a mãe, os avós repousam de um repouso que é lugar de imobilidade a partir do qual se medem todas as viagens e todos os afastamentos”. (DERRIDA, 2003, p. 67).
Para melhor explicar essa questão, nos é narrado o que se passa no fim de Édipo em Colono, já que, diz o filósofo: “Édipo ilustra, […], esta estranha experiência da hospitalidade: morre- se no estrangeiro e nem sempre como o teríamos desejado.” (DERRIDA, 2003, p. 68). Ao fim de sua vida, Édipo decide deixar o seu local de sepultamento – sua última morada – em segredo, e confia esse mistério a Teseu, que fica incumbido de guardá-lo para toda eternidade e preservá-lo principalmente das filhas de Édipo.
Quando toma essa atitude, Édipo “age como se quisesse agravar infinitamente o seu luto, adensá-lo mesmo” (DERRIDA, 2003, p. 67), já que priva as próprias filhas do seu luto. Quer dizer, ao mesmo tempo que ele as priva do luto, ele as condena a um luto infinito.
Para que Teseu guarde seu segredo, Édipo promete a ele a eterna segurança de Tebas, permitindo-o apenas revelar o endereço de sua última morada a um <<digno>> e assim sucessivamente, como veremos no trecho a seguir:
[…] confia-o ao mais digno, para que ele, por sua vez e assim sucessivamente, o revele ao seu sucessor. É deste modo que manterás o teus país ao abrigo dos estragos que lhe afligiriam os filhos da Terra […]. (DERRIDA, 2003, p. 72).
O que deseja Édipo ao tomar tal atitude? De acordo com Derrida, ele faz essa escolha a fim de assegurar a tradição.
A tradição será assegurada e este preço: a boa tradição, aquela que salvará a cidade, aquela que assegurará a salvação política da cidade, é dito que será transportada, como a própria tradição, pela transmissão de um segredo. (DERRIDA, 2003, p. 72).
Dessa forma, Édipo jamais será esquecido. Ele será sempre lembrado pelo segredo instituído através de um juramento e, por essa razão, Teseu torna-se para sempre refém do morto, não só ele, mas também as filhas de Édipo. Sendo assim, “toda gente é refém do morto, a começar pelo hóspede favorito, ligado pelo segredo que lhe é dado, confiado, dado a guardar, doravante obrigado pela lei que lhe cai em cima antes mesmo de escolher obedecer-lhe.” (DERRIDA, 2003, 75.).
Conclui-se, pois, que a partir das sessões pronunciadas por Derrida, pode-se deduzir que a lei da hospitalidade incondicional só pode existir enquanto lei geral e necessária para a manutenção das leis. Estas, por sua vez, espelham-se na lei, ainda que nunca a consigam ser. Isso porque “é o déspota familiar, o pai, o esposo e o patrão, o dono da casa que faz as leis da hospitalidade. Ele representa-as e sujeita-se-lhes, para sujeitar os outros, nesta violência do poder de hospitalidade […]. Quer dizer, o senhor da casa estabelece suas próprias leis, segundo seus princípios. Desse modo, a hospitalidade está diretamente atrelada a uma relação de poder entre o hospedeiro e o hóspede.
Pensando em um paralelo entre a psicanálise e esse texto de Derrida, não seria o analisando que nos chega o estrangeiro que aterriza em terras estranhas e pede hospitalidade em uma língua que não falamos? Se a hospitalidade é, como nos diz Derrida, a filosofia do impossível, não está
também a psicanálise no campo do impossível? Mas ainda assim estamos nós analistas em um esforço contínuo e de <<hospitalidade incondicional>> para perceber e escutar – principalmente escutar – aquele que chega e pede hospitalidade, que chega como hóspede no setting analítico e roga por se escutado, auscultado talvez as vezes chego a pensar. Aquele que chega fala em língua estrangeira, em língua que precisa ser decifrada, em que os símbolos e significantes têm de serem decodificados. Ser analista é dar lugar à alteridade, à diferença, a essa diferença que nos fala Derrida. E temos que nos atentar sempre porque hospitalidade se torna em tantos casos hostilidade quando não suportamos o lugar que outro ocupa como outro, como sendo outro, no lugar de outro. Ser analista é suportar a diferença.
Referências
DERRIDA, Jacques; DUFOURMANTELLE, A. Da Hospitalidade. Tradução de Fernanda Bernardo. Coimbra: Palimage Editores, 2003.
LEMINSKI, Paulo. Toda Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
Ciclo VI
Wanda Vieira Barbosa de Andrade Gomes
Título: O adolescente contemporâneo e o lugar dos pais
A adolescência é vivenciada e compreendida como sendo uma fase conturbada, este período refere- se a infância e a vida adulta, sendo permeada por mudanças físicas, psíquicas e afetivas.
É o período que marca o fim do período de latência (com a puberdade), e faz a transição para a fase genital (fase adulta).
Contardo Calligaris, no livro “Adolescente” diz que os adolescentes ficam ansiosos por tomarem conta de sua existência e se lançarem para além dos portões da vida familiar. Isso tudo permeado por uma espécie de metamorfose em seu corpo.
Nasio, no livro “Como agir com um adolescente difícil”, define a adolescência como sendo: ………… uma passagem obrigatória, a passagem delicada, atormentada, mas igualmente criativa, que vai do fim da infância ao limiar da maturidade. Um adolescente é um menino ou menina que cessa gradativamente de ser uma criança e ruma com dificuldade para o adulto que virá a ser.
Nasio, define a adolescência por três distintos pontos de vistas:
A biológica, que corresponde a entrada na puberdade, momento da vida em que a criança de mais ou menos onze anos tem seu corpo inflamado com uma carga hormonal, modificando este corpo com o desenvolvimento dos órgãos genitais e alterando suas formas anatômicas, preparando assim o corpo da menina e do menino para a fase adulta com a completa maturação e capacidade de reprodução.
A social corresponde ao período da dependência infantil a emancipação do jovem adulto, este fator vai mudar de acordo com a cultura e o ambiente em que vive. Há dados que esta fase poderá
prorrogar-se até os vinte e cinco anos, onde o sujeito só vai se tornar totalmente independente financeiramente dos pais.
E na visão psíquica, Nasio vai dizer que, o adolescente contemporâneo é um ser conturbado, que de um lado pode ser muito alegre e de outro estar deprimido, sem interesse algum pela vida, tudo nele e uma contradição e um excesso.
A adolescência e um momento cheio de dúvidas e incertezas, comparado a um limbo, uma travessia, entre o que fica da infância e o receio da vida adulta que ainda está por vir. É o momento de dizer adeus ao mundo da criança com as brincadeiras e olhar para o que ainda não existe.
Esta fase muitas vezes é vivenciada como sendo um luto, não se é criança mais também não é adulto, é um momento de transição e um sentimento de não pertencimento a lugar nenhum.
A fase da irresponsabilidade não existe mais, no lugar surgem as cobranças, deveres e as responsabilidades de quem eu vou ser.
A fase da adolescência não e somente uma fase problemática que traz transtornos ou complicações, esta fase também poderá trazer momentos de idealização, de sonhos e de todas as possibilidades de quem eu poderei ser, vai depender do ambiente que o sujeito está inserido.
E com este olhar de possibilidades de construções de um novo sujeito e todas as mudanças que são atravessadas nesta fase, que tento desenvolver uma breve narrativa do que é a adolescência na visão de alguns autores, passando pelo luto da criança que ficou para trás e o lugar dos pais em todo este processo.
O termo adolescente e bem recente, fruto do século XX, surgiu primeiramente no século VI e só foi utilizado no século XVIII, onde ainda se confundia com a infância, muitas vezes o adolescente de hoje era considerado como um miniadulto.
O termo adolescente vai ocupar o estatuto que conhecemos, somente após o entre guerras, onde cada vez mais estes adolescentes ficaram mais isolados da vida dos adultos, resumindo sua convivência entre a família e a escola, não mais no trabalho ou nas questões do mundo dos adultos.
Se pensarmos de um modo histórico, anteriormente os filhos assumiam um futuro que já estava traçado de acordo com o lugar que as famílias ocupavam na sociedade, ou seja, era uma
continuidade da função que já existia, estava traçado o futuro deste sujeito, não se tinha muito a sonhar ou escolher.
A história da nobreza na idade média nos traz relatos de jovens a partir dos treze anos comandando impérios ou exércitos e os que não pertenciam a nobreza também iriam ocupar funções semelhantes ao que as famílias já exerciam, com o intuito de ajudar no sustento familiar.
Diante destes fatos comportamentais não muito distantes, e inevitável perguntar o que mudou no comportamento social e no pensamento dos adolescentes que conhecemos hoje?
Talvez aqui tenhamos um caminho para pensar, este jovem adolescente contemporâneo, não quer mais ser comparado aos seus pais, existe aí um rompimento com os modelos de padrões anteriores e um questionamento sobre o saber dos mais velhos e a autoridade dos pais.
Esta mudança de pensamento está relacionada ao declínio do patriarcado, a organização das famílias se modificou. A sociedade se constitui agora não mais com normas impostas por este patriarcado, que era o pai como autoridade, a mãe na posição de submissa deste pai e a dependência dos filhos na infância e no seu futuro.
Quais as consequências disso? A princípio este sujeito vai se deparar com escolhas que não são mais predeterminadas, ele vai ter que fazer escolhas para a vida inteira, isto pode ser assustador e pode gerar em muitos casos angústia.
Na obra de Freud, “Romances Familiares” (1906), ele comenta que o progresso da sociedade está na diferença entre as gerações, pois as mudanças de hábitos e formas de posicionamento é que fazem o engrandecimento de cada geração, implicando fundamentalmente na posição afetiva em relação aos pais, que eram até então, as únicas autoridades e fonte de todos os conhecimentos.
Ouvimos muitos adolescentes dizerem, eu quero outro tipo de vida, eu não quero ser como os meus pais, ou eu não sei o que quero, mais não quero ser o que vejo.
Freud não fala em adolescente em seus textos, como vimos este termo é fruto do século XX, mais sim em puberdade.
Em “Os três ensaios sobre a sexualidade” (1905), ele compara esta fase a um túnel de dois lados, passado e futuro e a imagem do escuro de tudo isso.
O túnel é a elaboração do que precisa ser deixado para trás, e o que vai fazer no futuro sem garantias, o sujeito será convocado e não sabe se dará conta.
Se diz muito que a dificuldade da adolescência seja referente a transformação fisiológica da puberdade em seu corpo, na realidade é um momento de separação da criança que se não existe mais e uma tentativa de criar um saber sobre si. Este jovem adolescente tem que lidar com um corpo que ainda não conhece e neste momento surgem as fantasias, a proibição e a culpa. A maior importância desta fase e dissociar a vida imaginaria e a realidade.
Continuando no texto “Os três ensaios sobre a sexualidade” Freud descreve o período da puberdade:
………Com a chegada da puberdade introduzem-se as mudanças que levam a vida sexual infantil a sua configuração normal definitiva. Até esse momento, a pulsão sexual era predominantemente auto-erótica; agora, encontra o objeto sexual. Até ali, ela atuava partindo de pulsões e zonas erógenas distintas que, independendo umas das outras, buscavam um certo tipo de prazer como alvo sexual exclusivo. Agora, porém, surge um novo alvo sexual para cuja consecução todas as pulsões parciais se conjugam, enquanto as zonas erógenas subordinam-se ao primado da zona genital.
Em geral, a pulsão sexual torna-se autoerótica, e só depois de superado o período de latência é que se restabelece a relação originária. Não é sem boas razões que, para a criança, a amamentação no seio materno toma-se modelar para todos os relacionamentos amorosos. O encontro do objeto é, na verdade, um reencontro.
Freud continua … Para que essa transformação tenha êxito, é preciso contar, em seu processo, com as disposições originárias e com todas as particularidades das pulsões. Como em todas as outras ocasiões em que se devem realizar no organismo novas combinações e composições que levam a mecanismos complexos, também aqui há uma oportunidade para perturbações patológicas, caso essas reordenações não se realizem. Todas as perturbações patológicas da vida sexual devem ser consideradas, justificadamente, como inibições do desenvolvimento.
A adolescência é caracterizada por mudanças que nem o próprio adolescente consegue explicar é necessário que neste momento seus cuidadores saibam lidar com a situação. Este jovem precisa se sentir seguro e de alguma forma expor seus sentimentos sem que seja questionado ou criticado. Esta fase é um momento de mutação para o resto de seu desenvolvimento, construindo bases daquilo que poderá ser no futuro. Qualquer trauma poderá criar uma cicatriz para o resto da vida.
A adolescência e uma fase de fragilidades para os adolescentes, por não saber como lidar com as mudanças e nem onde tudo isto os levará. Muitas vezes surgem aqui, comportamentos agressivos, físicos ou verbais, o intuito da agressão é de se proteger.
Quando o apoio tão necessário não vem de casa, normalmente estes adolescentes irão para os grupos que estão passando pelo mesmo processo, estes grupos vão lhe dar a segurança necessária que estão necessitando.
O adolescente vai sempre para o ato, tem dificuldades de elaboração, tudo passa pelo corpo, normalmente nessa fase aparecem as tatuagens, piercings, roupas diferenciadas, tudo representa uma tentativa de singularização, como se fosse uma inscrição no próprio corpo.
Contardo Calligaris, descreve este momento da puberdade até a fase adulta como sendo uma fase sustentada pela imaginação de todos os adolescentes e seus pais, comparando este intervalo (adolescente, adulto) como uma moratória, ou seja, uma conceção de prazo, onde vai postergar várias exigências sociais, como trabalho, matrimonio e filhos.
Apesar do corpo estar pronto, o adolescente não e reconhecido como adulto, este sujeito fica por mais ou menos dez anos sob a tutela dos adultos, como um período de maturação, uma autorização postergada onde o adolescente vive um processo de suspensão e ao mesmo tempo a idealização social de que ele tem que ser feliz.
Na nossa sociedade o jovem adolescente não é ajudado para fazer a travessia de uma fase para a outra, ele não passa por ritos de iniciação como temos em outras culturas, eles mesmos devem se dar o direito da passagem.
Os ritos de iniciação sustentavam a sublimação da castração, hoje com os modelos sociais diferentes, onde os filhos não buscam se suceder aos pais, este modelo não se justifica mais.
Freud, em “três ensaios sobre a sexualidade”, na metamorfose da puberdade, descreve as transformações operadas no corpo da criança durante a puberdade, acentuando suas consequências na vida erótica do sujeito. Neste momento as exigências pulsionais aparecem pela primeira vez, como capazes de realização.
Estas exigências repercutem nos diferentes âmbitos da vida. Considera-se aqui a puberdade como o momento do mal-estar, presente em qualquer sujeito.
Este Mal-estar está relacionado ao despertar para o desejo, à delicada relação do sujeito com o próprio corpo, o traumático encontro com o outro e a difícil separação da autoridade dos pais.
A separação dos pais se inicia antes do período de latência, ou seja, é anterior à puberdade, implicando a incorporação deles. Essa incorporação se dá por meio de uma identificação com eles, que, internalizados, passam a integrar o supereu, herdeiro do complexo de Édipo.
A dificuldade da adolescência dependeria então da própria fúria desse supereu, o qual, quanto mais terrível é, mais aumenta as dificuldades do sujeito, sobretudo no que diz respeito ao campo de sua sexualidade, ou seja, ao campo do desejo, que sempre é, de uma forma ou de outra, sexual.
O papel dos pais
A presença dos pais na vida dos adolescentes é fundamental, para que haja a separação, tem que haver a presença deles.
Muitos pais na adolescência de seus filhos desistem de suas funções, porque entendem que não são mais ouvidos ou respeitados. Nestes casos teremos uma inversão de papeis, os pais se separando dos filhos.
Se a separação partir dos pais, o adolescente vai se sentir abandonado e provavelmente haverá um movimento de chamar atenção destes pais, iniciando aqui uma série de dificuldades que o adolescente poderá atravessar.
Por outro lado, haverá também jovens que poderão sentir dificuldades de se separarem de seus pais por não suportarem renunciar à ternura parental. Porém para alguém se envolver amorosamente com outra pessoa terá de perder um pouco o amor pelos pais.
Freud vai dizer que a afeição pelos pais e o mais importante vestígio revivido na adolescência que aponta o caminho para a escolha do objeto.
Em uma situação de dificuldade de separação dos pais, notamos que nem tudo está decidido na dissolução do Complexo de Édipo e que os aspectos subjetivos poderão retornar nesta fase.
Freud descreve que se o Complexo de Édipo persiste é porque não era tão recalcado assim, o retorno põe a mostra uma falha no recalcamento e um reforço no complexo de castração.
Muitas vezes os adolescentes não conseguem verbalizar o sofrimento que os invade por não identificar corretamente o que sente, cabe aos adultos quando possível ajudá-los a interpretar o mal-estar que os invade.
Se faz necessário que o jovem adolescente passe a arriscar mundo a fora em busca do amor e satisfação própria para além da família.
A renúncia da figura parental, vivida no Complexo de Édipo poderá ser compensada por outro objeto, agora não interditado pela proibição do incesto.
Temos também a idealização de muitos pais sobre seus filhos, que antes mesmo de seus filhos nascerem já existe um futuro idealizado para este bebê.
Neste processo de idealização os pais não aceitam este jovem como ele veio a ser e o jovem se sente impedido pelos pais o seu desejo de quem gostaria de ser.
Para que haja um resultado satisfatório neste processo, os pais devem aceitar os desejos de seus filhos, aceitar suas perdas e desistir da idealização deste adolescente ideal.
Conclusão
A adolescência é mais do que a puberdade física, embora se baseie sobretudo nesta. A adolescência implica no crescimento, físico e mental, e esse crescimento leva tempo.
Enquanto este crescimento se encontra em progresso, a responsabilidade tem de ser assumida pelas figuras parentais. Se essas figuras abdicam, então os adolescentes têm de passar para uma falsa maturidade e perder sua maior vantagem, a liberdade de ter ideias e de agir segundo seus impulsos.
A separação do adolescente em relação aos pais inclui abandonar a ideia que a felicidade está em fazer seus pais satisfeitos, e saber que ele pode buscar sua própria satisfação independente dos pais.
O que vemos hoje na contemporaneidade é um sujeito (adolescente) des bussolado. Há uma mudança em relação ao gozo recalcado, dos tempos de Freud, para o gozo como direito na atualidade, onde o sujeito ultrapassa as inibições na busca do gozo.
Qual a diferença do adolescente freudiano para o adolescente contemporâneo? A diferença em relação ao que ocorria com o adolescente freudiano está no fato de que os sujeitos de hoje se sentem no direito de gozar de todos os objetos, enquanto o adolescente freudiano se sentia culpado em querer tudo. O sujeito de direito da contemporaneidade é, sobretudo um sujeito de direito de consumo.
Se antes se fazia sintoma porque exigia um ideal a ser alcançado, hoje produz angústia em lidar com um vazio que se desvela na busca frenética dos objetos.
Referências
- Alberti, Sonia. Esse sujeito adolescente Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos -Contracapa, 2009.
- Alberti, Sonia O adolescente e o Outro / Sonia Alberti. – 3.ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
- Calligaris, C. A Adolescência. São Paulo: Publifolha, 2000.
- Françoise Dolto – A Cauda dos Adolescentes, editora, ideias & letras, 2ª. Edição 2015.
- Freud, S, três ensaios sobre a sexualidade (1905), Cia das Letras.
- Freud, S, A dissolução do complexo de Édipo (1924), Cia das Letras.
- Freud, S, As transformações da Puberdade (1905), Cia das Letras
- Freud, S. Romances Familiares (1906). “Gradiva” de Jensen e outros trabalhos VOLUME IX.
- Nasio, Juan-David, como agir com um adolescente difícil? J.-D. Nasio; tradução André Telles. – Rio de Janeiro: Zahar, 2011;
- Artigo publicado na revista Psique nº 53, maio 2010), Jorge Forbes, Desbussolado.